quinta-feira, 30 de abril de 2015

WENCESLAU DE MORAIS - Aqui

 
 





Wenceslau de Morais (Lisboa, Portugal, 1854 – Tokushima, Japão, 1929) foi escritor, poeta, tradutor e militar da Marinha Portuguesa.

É, sem dúvida, o grande orientalista da literatura portuguesa, dos finais do século XIX, princípios do século XX, tendo publicado muitos livros notáveis sobre o Japão.

Algumas das suas obras: Traços do Extremo Oriente, Notícias do Exílio Nipónico, Fernão Mendes Pinto no Japão, Osoroshi.


Palavras de Wenceslau de Morais:

A mania de escrever acarreta por si só muitos enfados, muitos desgostos, e até muitas desgraças. Eu tenho passado a vida a rabiscar coisas. Que tenho ganho com isso? Nada!”
 
 
 
                        Aqui
 
 
Aqui, entre os juncos e as flores do lótus,
compreendi que o inferno e o céu,
por mais que os deuses e os livros nos levem
a pensar o contrário, estão no coração do homem.
Eu conheci ambos deambulando por dentro de mim
e fazendo da sombra um desejo de luz
e da luz um secreto desejo de sombra.
Não foi o sol que me queimou o rosto,
foi o lume das inquietações fatais,
e quedei-me assim, apátrida e só,
numa terra a que chamo minha
mas que faz o longe tornar-se fatalidade.
 
Apego-me à sabedoria volátil e certa dos provérbios
e aprendo neles que sou, que sempre fui,
um insecto do estio a voar para a chama
e que após a neve vem o Nirvana.
Sempre encaminhei os meus passos na direcção da luz,
mas foi a treva que encontrei, fixando os pedaços
de reboco que se soltam do tecto
presos ao voo dos besouros, enquanto
eu me perco no labirinto da minha solidão.
 
Vê como eu morro devagar
enquanto a chuva desenha na poeira
as metáforas do Outono e do assombro.
Vê como eu apodreço à ilharga da música
que sai do interior das conchas
junto à rebentação das ondas,
no sítio onde os poetas há muito
deixaram de escrever e de sonhar.
Vê como eu me torno estrangeiro absoluto
numa terra que quer ser minha
mas que eu não consigo guardar no coração
como coisa essencial da minha vida.
 
Wenceslau de Morais, in “O Profeta do Orvalho”
 

 
 

              

quarta-feira, 29 de abril de 2015

SAINT-JOHN PERSE - Estreitos são os navios

 
 
 
 
 
 

Saint-John Perse (Guadalupe, Caraíbas, 1887- Giens, França, 1975), poeta e diplomata, é autor das obras mais talentosas da poesia francesa do século XX.

Exerceu funções diplomáticas em Pequim e em Xangai.

Publicou, em 1910, Éleges, o seu primeiro livro de poemas influenciados pelo Simbolismo, desenvolvendo, mais tarde, um estilo pessoal.

Recebeu o “Prémio Nobel de Literatura” de 1960, pelo conjunto da sua obra.

 


Palavras de Saint-John Perse:

"Em termos de teoria literária, nada tenho a dizer: nunca apreciei os cozinhados dos químicos."
 
 
Estreitos são os navios (fragmentos)


Estreitos  são os navios, como estreito o nosso tálamo.
Imensa a extensão das águas,  mais vasto o nosso império
Nas câmaras cerradas do desejo.

Entra o  Verão, que vem do mar. Somente ao mar diremosOs estrangeiros que fomos nas  festas da Cidade, e qual o astro subindo das festas submarinas
Que veio  uma noite, sobre o nosso tálamo, farejar o leito do divino.
Em vão a  terra próxima nos vai traçando a sua fronteira.
Uma única vaga através do  mundo, uma única vaga desde Tróia
Até nós vem rolando a sua anca.
No  muito grande largo, ao largo, longe de nós, outrora este sopro se  imprimiu…
E uma noite nas câmaras foi imenso o rumor: a própria morte,  nem ao som de búzios, de modo algum aí se faria ouvir!

Amai os  navios, ó pares apaixonados; e o mar alto no interior dos  quartos!

Uma tarde a terra chora os seus deuses, e o homem dá caça  às feras ruivas; as cidades usam-se, as mulheres sonham… Que exista sempre à  nossa porta
Esta alvorada imensa chamada mar  escol de largas asas e  levantamento armado, amor e mar do mesmo leito, amor e mar no mesmo leito.

 
Saint-John Perse, in “Estrofe”
Tradução: David Mourão  Ferreira
 

 


terça-feira, 28 de abril de 2015

EUGÉNIO DE ANDRADE – Um Amigo é às vezes o Deserto

 
 
 
 
 
 
 

Eugénio de Andrade (Póvoa da Atalaia, Portugal, 1923 – Porto, Portugal, 2005) foi poeta, escritor e tradutor.
Não integrou nenhum dos movimentos literários seus contemporâneos, porém, com espírito solidário, colaborou em diversas revistas a eles ligadas.
Em 1942 publica o seu primeiro livro de poesia, Adolescente.
Publicou mais de vinte livros de poesia, além de obras em prosa, antologias, livros para crianças e traduções para português de grandes poetas estrangeiros.
Na sua poesia existem três temas que são transversais na sua obra: o êxtase, a melancolia e o envelhecimento.
 
Palavras de Eugénio de Andrade:
"Caridade é uma palavra de flancos frios e águas estanques. Conduz sem grandes desvios ao mundo pantanoso e pervertido da repressão, onde a consciência que se diz virtuosa mais não faz que servi-lo, desinteressada como está em que a potencialidade humana se afirme em todo o seu esplendor."
 
 
Um Amigo é às vezes o Deserto
 
Um amigo é às vezes o deserto,
outras a água.
Desprende-te do ínfimo rumor
de agosto; nem sempre
 
um corpo é o lugar da furtiva
luz despida, de carregados
limoeiros de pássaros
e o verão nos cabelos;
 
é na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.

O real é a palavra.
 
 
Eugénio de Andrade, in “Branco no Branco”
Imagem: retrato de Eugénio de Andrade, por Carlos Botelho.
 
 

 
 
 


segunda-feira, 27 de abril de 2015

BERNARDIM RIBEIRO - Ontem Pôs-se o Sol

 
 





Bernardim Ribeiro (Torrão, Alentejo, Portugal, 1482 – Lisboa, Portugal,1552).

Foi o fundador da poesia bucólica em Portugal.

 A sua obra compõe-se de doze composições, insertas no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, quatro éclogas, a sextina Ontem pôs-se o Sol e a novela Menina e Moça.

Os seus temas preferidos estão relacionados com a infelicidade amorosa.
 
 
Ontem Pôs-se o Sol
 
Ontem pôs-se o sol, e a noute
cobriu de sombra esta terra.
Agora é já outro dia,
tudo torna, torna o sol;
só foi a minha vontade,
para não tornar c’o tempo!
Tôdalas cousas, per tempo,
passam, como dia e noute;
ua só, minha vontade,
não, que a dor comigo a aterra;
nela cuido em quanto há sol,
nela enquanto não há dia.
Mal quero per um só dia
a todo outro dia e tempo,
que a mim pôs-se-me o sol
onde eu só temia a noute;
tenho a mim sôbre a terra,
debaxo minha vontade.
Dentro na minha vontade
não há momento do dia
que não seja tudo terra;
ora ponho a culpa ao tempo,
ora a torno a pôr à noute:
no milhor pon-se-me o sol!
Primeiro não haverá sol
que eu descanse na vontade.
Pon-se-me ua escura noute
sôbre a lembrança de um dia...
Inda mal porque houve tempo
e porque tudo foi terra.
Haver de ser tudo terra
quanto há debaixo do sol
me descansa, porque o tempo
me vingará da vontade;
se não que antes dêste dia
há-de passar tanta noute!


Bernardim Ribeiro, in “Antologia Poética”
 

 
 


domingo, 26 de abril de 2015

RISTO RASA - Espero que voltes

 
 
 
 
 
 

Risto Rasa ( Helsínquia, Finlândia, 1954).

É poeta e bibliotecário.

Escreve pequenos poemas inspirados no haiku, estilo literário de origem japonesa.
 
 
 
 
Espero que voltes


Espero que voltes.
Vamos andar por todos os lugares que conhecemos tão bem
E eles vão parecer-me quase novos outra vez.
 
 
Risto Rasa
 
 

 

 

 

sábado, 25 de abril de 2015

NATÁLIA CORREIA - Cântico do País Emerso

 
 
 
 
 

Natália Correia (Fajã de Baixo, São Miguel, Açores, Portugal, 1923 – Lisboa, Portugal, 1993).

A linguagem viva e a versatilidade dos géneros caracterizam-lhe a obra, que engloba teatro, romance, poesia e ensaio.

Foi uma mulher notável, multifacetada, provocante, apaixonada da liberdade, que marcou uma época nas letras e na política.
Recusou, ao longo da sua vida, as sucessivas arrumações da sua obra em géneros literários.
 
 
Palavras de Natália Correia:
“O espírito manifesta-se de diversas formas divinas, que são os deuses. É isso o politeísmo! O politeísmo é a própria demonstração de que a unidade está no espírito e que os deuses são facetas dessa unidade. Eu sou uma espiritualista!”
 
                 Cântico do País Emerso
 
Os previdentes e os presidentes tomam de ponta
Os inocentes que têm pressa de voar
Os revoltados fazem de conta fazem de conta...
Os revoltantes fazem as contas de somar.
 
 
Embebo-me na solidão como uma esponja
Por becos que me conduzem a hospitais.
O medo é um tenente que faz a ronda
E a ronda abre sepulcros fecha portais;
 
 
Os edifícios são malefícios da conjura
Municipal de um desalento e de uma Porta.
Salvo a ranhura para sair o funeral
Não há inquilinos nos edifícios vistos por fora
 
 
Que é dos meninos com cataventos na aérea
Arquitetura de gargalhadas em cornucópia?
Almas bovinas acomodadas à matéria
Pastam na erva entre as ruínas da memória,
 
 
Homens por dentro abandalhados em unhas sujas
Que desleixaram seu coração num bengaleiro;
Mulheres corujas seriam gregas não fossem as negras
Nódoas deixadas na sua carne pelo dinheiro;
 
 
Jovens alheios à pulcritude do corpo em festa
Passam por mim como alamedas de ciprestes
E a flor de cinza da juventude é uma aresta
Que me golpeia abrindo vácuos de flores silvestres
 
 
E essa ansiedade de mim mesma me virgula
Paula de pátria entressonhada. É um crisol.
E, o fruto agreste da linfa ardente que em mim circula
Sabe-me a sol. Sabe-me a pássaro. Pássaro ao sol.
 
 
Entre mim e a cidade se ateia a perspectiva
De uma angústia florida em narinas frementes. 
Apalpo-me estou viva e o tacto subjectiva-me
a galope num sonho com espuma nos dentes.
 
 
E invoco-vos, irmãos, Capitães-Mores do Instinto!
Que me acenais do mar com um lenço cor da aurora
E com a tinta azulada desse aceno me pinto.
O cais é a urgência. O embarque é agora.
 
Natália Correia

 
 
 

 

sexta-feira, 24 de abril de 2015

CHARLES SIMIC – Laranja cor de Sangue

 
 
 
 
 
 

Charles Simic (1938) poeta sérvio-americano.
 
Palavras de Charles Simic:
“Poesia é um órfão do silêncio. As palavras nunca são completamente iguais à experiência atrás delas.”


                Laranja cor de Sangue
 
 
Está tão escuro que o fim do mundo pode estar próximo.
Convenço-me que vai chover.
Os pássaros no jardim estão silenciosos.
Nada é o que parece,
Nem nós mesmos.
 
Na nossa rua há uma árvore tão grande
Que podemos esconder-nos todos nas suas folhas.
Nem precisaremos de roupas.
Sinto-me tão velho como uma barata, disseste.
Imagino-me passageiro de um navio-fantasma.
 
Agora nem um suspiro lá fora.
Se alguém abandonou uma criança no nosso patamar,
Deve estar a dormir.
Tudo está a vacilar na borda de tudo
Com um sorriso polido.
 
É porque há coisas neste mundo
Sem qualquer solução, disseste.
Nesse instante ouvi a laranja cor de sangue
Rebolar pela mesa e com um baque
Cair no chão rachada ao meio.
 
Charles Simic, in “Previsão de Tempo para Utopia e Arredores”.
Tradução: José Alberto Oliveira
 


 
 

 

 
 

MALMEQUER

MALMEQUER Português, ó malmequer Em que terra foste semeado? Português, ó malmequer Cada vez andas mais desfolhado Ma...