sábado, 30 de novembro de 2013

VERGÍLIO FERREIRA – Veio ter comigo hoje a Poesia

 
 
 
 
Veio ter comigo hoje a Poesia


Há quantos anos? Desde a juventude.
Veio num raio de sol, num murmúrio de vento.
E a ilusão que me trouxe de uma antiga alegria
reinventou-me a antiga plenitude
que já não invento.


Fazia-lhe outrora poemas verdadeiros
em fornicações rápidas de galo.
Hoje não sou eu nunca por inteiro
e há sempre no que faço um intervalo.


Estamos ambos tão velhos — que vens fazer?
— a cama entre nós da nossa antiga função.
Nublado o olhar só de a ver.
E tomo-lhe em silêncio a mão.


Vergílio Ferreira, in “Conta-Corrente”.
Ilustração: “Le livre ouvert” de Juan Gris

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

FERNANDA BOTELHO - Amnésia

 


                  Amnésia

Posso pedir, em vão, a luz de mil estrelas:
penas obtenho este desenho pardo
que a lâmpada de vinte e cinco velas
estende no meu quarto.

Posso pedir, em vão, a melodia, a cor
e uma satisfação imediata e firme:
(a lúbrica face do despertador
é quem me prende e oprime).

E peço, em vão, uma palavra exata,
uma fórmula sonora que resuma
este desespero de não esperar nada,
esta esperança real em coisa alguma.

E nada consigo, por muito que peça!
E tamanha ambição de nada vale!
Que eu fui deusa e tive uma amnésia,
esqueci quem era e acordei mortal.


Fernanda Botelho

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

NUNO JÚDICE

 
 

        
         Nuno Júdice nasceu na Mexilhoeira Grande, Algarve, no dia 29 de Abril de 1949.

        É poeta, ficcionista, tradutor e professor universitário.    

        Publicou o primeiro livro de poesia em 1972, intitulado, “A Noção de Poema”.

        Está representado em diversas antologias poéticas.

        Em 1994, organizou a “Semana Europeia de Poesia”, integrada na celebração de “Lisboa Capital Europeia da Cultura”. Participou, entre outros, nos festivais de poesia de Roterdão e Medellin.

       Escreveu a peça de teatro “Flores de Estufa”, representada em Lisboa e no Porto.

       É um dos membros permanentes do júri do Prémio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus.

        Ontem, dia 27 de Novembro, Nuno Júdice recebeu em Madrid, o “Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana”. O galardão premeia o conjunto da obra poética do autor.

 

 
Um Poema de Amor

 
Não sei onde estás, se falas
ou se apenas olhas o horizonte,
que pode ser apenas o de uma
parede de quarto. Mas sei que

uma sombra se demora contigo,
quando me pergunto onde estás:
uma inquietação que atravessa
o espaço entre mim e ti, e
te rouba as certezas de hoje,
como a mim me dá este poema.

 
Nuno Júdice, in "O Movimento do Mundo".

 


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

DECLARAÇÃO DE AMOR



     Declaração de Amor

(e o poeta cai na armadilha)

Ó maravilha! Voará ainda?
Sobe e as suas asas não se mexem?
Quem é então que o leva e faz subir?
Que fim tem ele, caminho ou rédea, agora?

Como a estrela e a eternidade
Vive nas alturas de que se afasta a vida,
Compassivo, mesmo para com a inveja...
E quem o vê subir sobe também alto.

Ó albatroz! Ó minha ave!
Um desejo eterno me empurra para os cimos
Pensei em ti e chorei.
Chorei mais e mais... Sim, eu amo-te!


Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"

terça-feira, 26 de novembro de 2013

RAÚL BRANDÃO

 

Raúl Brandão nasceu a 12 de Março de 1867, na Foz do Douro. Viveu até 5 de Dezembro de 1930.

Iniciou-se como escritor em 1890, editando a colectânea de contos naturalistas “Impressões e Paisagens”.

Foi um dos mais entusiastas renovadores do movimento literário. Dirigiu a “Revista de Hoje” em 1895, com Júlio Brandão e D. João de Castro. Teve uma actividade jornalística de grande sucesso.

Participou no grupo “Os Insubmissos” e coordenou a revista com o mesmo nome.

Escreveu várias peças, das quais se destacam: “Noite de Natal” em parceria com Júlio Brandão, “O Doido e a Morte”, “O Rei Imaginário”, “O Gebo e a Sombra”. Esta última peça foi adaptada a filme por Manoel de Oliveira, em Paris. É uma tragédia que acusa as desigualdades sociais e a injustiça. A luta dos pobres contra o egoísmo da burguesia.

Em 1917 publicou “Húmus”, considerada uma obra-prima da literatura portuguesa, dedicada a Columbano, do qual era amigo, e que lhe pintara dois retratos.

Raúl Brandão idealizou um projecto literário para a publicação de quatro livros com o título genérico “A História Humilde do Povo Português”. O primeiro volume foi denominado “Os Pescadores”, a seguir “Os Lavradores”, “Os Pastores” e “Os Operários”. Somente um foi publicado.

A obra “As Ilhas Desconhecidas”, surge a pós uma viagem do escritor aos Açores.

Raúl Brandão é considerado o grande modernista português na ficção.

Um excerto do livro "HÚMUS":
 
"Desde que se cumpram certas cerimónias ou se respeitem certas fórmulas, consegue-se ser ladrão e escrupulosamente honesto - tudo ao mesmo tempo.
A honradez deste homem assenta sobre uma primitiva infâmia. O interesse e a religião, a ganância e o escrúpulo, a honra e o interesse, podem viver na mesma casa, separados por tabiques.
Agora é a vez da honra - agora é a vez do dinheiro - agora é a vez da religião. Tudo se acomoda, outras coisas heterogéneas se acomodam ainda. Com um bocado de jeito arranja-se-lhes sempre lugar nas almas bem formadas”.

           Nenhum de nós sabe o que existe e o que não existe. Vivemos de palavras. Vamos até à cova com palavras. Submetem-nos, subjugam-nos. Pesam toneladas, têm a espessura de montanhas. São as palavras que nos contêm, são as palavras que nos conduzem. (...)
 (...) Existe uma certa grandeza em repetir todos os dias a mesma coisa. O homem só vive de detalhes e as manias têm uma força enorme: são elas que nos sustentam.

Estamos enterrados em convenções até ao pescoço: usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca-nos. Pega-se. Adere. Há dias em que não distingo estes seres da minha própria alma; há dias em que através das máscaras vejo outras fisionomias, e, sob a impassibilidade, dor; há dias em que o céu e o inferno esperam e desesperam. Pressinto uma vida oculta, a questão é fazê-la vir à supuração”.

 

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

A POESIA E A PAZ (III)

 



       Qualquer Coisa de Paz

Qualquer coisa de paz. Talvez somente
a maneira de a luz a concentrar
no volume, que a deixa, inteira, assente
na gravidade interior de estar.

Qualquer coisa de paz. Ou, simplesmente,
uma ausência de si, quase lunar,
que iluminasse o peso. E a corrente
de estar por dentro do peso a gravitar.

Ou planalto de vento. Milenária
semeadura de meditação
expondo à intempérie a sua área

de esquecimento. Aonde a solidão,
a pesar sobre si, quase que arruína
a luz da fronte onde a atenção domina.

Fernando Echevarría, in "Figuras"

 

domingo, 24 de novembro de 2013

QUEIXA E IMPRECAÇÕES DUM CONDENADO À MORTE

 
 

Queixa e Imprecações dum Condenado à Morte
 
Por existir me cegam,
Me estrangulam,
Me julgam,
Me condenam,
Me esfacelam.
Por me sonhar em vez de ser me insultam,
Por não dormir me culpam
E me dão o silêncio por carrasco
E a solidão por cela.
Por lhes falar, proíbem-me as palavras,
Por lhes doer, censuram-me o desejo
E marcam-me o destino a vergastadas
Pois não ousam morder o meu corpo de beijos.

 

Passo a passo os encontro no caminho
Que os deuses e o sangue me traçaram.
E negando-me, bebem do meu vinho
E roubam um lugar na minha cama
E comem deste pão que as minhas mãos infames amassaram.
Com angústia e com lama.

 

Passo a passo os encontro no caminho.
Mas eu sigo sozinho!
Dono dos ventos que me arremessaram,
Senhor dos tempos que me destruíram,
Herói dos homens que me derrubaram,
Macho das coisas que me possuíram.

 

Andando entre eles invento as passadas
Que hão-de em triunfo conduzir-me à morte
E as horas que sei que me estão contadas,
Deslumbram-me e correm, sem que isso me importe.

 

Sou eu que me chamo nas vozes que oiço,
Sou eu quem se ri nos dentes que ranjo,
Sou eu quem me corto a mim mesmo o pescoço,
Sou eu que sou doido, sou eu que sou anjo.

 

Sou eu que passeio as correntes e as asas
Por sobre as cidades que vou destruindo,
Sou eu o incêndio que lhes devora as casas,
O ladrão que entra quando estão dormindo.

 

Sou eu quem de noite lhes perturba o sono,
Lhes frustra o amor, lhes aperta a garganta.
Sou eu que os enforco numa corda de sonho
Que apodrece e cai mal o sol se levanta.

 

Sou eu quem de dia lhes cicia o tédio,
O tédio que pensam, que bebem e comem,
O tédio de serem sem nenhum remédio
A perfeita imagem do que for um homem.

 

Sou eu que partindo aos poucos lhes deixo
Uma herança de pragas e animais nocivos.
Sou eu que morrendo lhes segredo o horror
de serem inúteis e ficarem vivos.

 
Ary dos Santos, in "Obra Poética"

sábado, 23 de novembro de 2013

MALANGATANA

 

 
         Malangatana nasceu em Matalana, Moçambique, no dia 6 de Junho de 1936. Viveu até 5 de Janeiro de 2011.

        Foi poeta, actor, artista plástico, músico, organizador de festivais, dançarino.

         Fez tapeçaria, gravura, escultura e cerâmica.       

              Realizou exposições em Moçambique, Portugal, Alemanha, Brasil, Estados Unidos, Índia, Suécia, Colômbia, etc.

        Foi um dos criadores do Museu Nacional de Arte de Moçambique, e um entusiasta impulsionador do Centro Cultural Matalana, na sua terra natal.

        Recebeu o título de “Doutor Honoris Causa” pela Universidade de Évora e a condecoração, atribuída em 2010 pelo governo francês, de “Comendador das Artes e Letras”.

              A Unesco nomeou-o “Artista pela Paz"
 
Amor Verde

Porque o amor não é sempre verde
que bom quando verde é
nem quero que mudes de cor
ó amor verde, verde, verde
ele é tão bom, bom, bom.

Na cama quando passei a primeira noite
senti-me feliz quando corria dentro dela
a lágrima que nos fez amigos infinitos
porque dela veio quem nos chama: Papá e Mamã
o nosso primeiro filho, tão lindo, lindo.

Malangatana, in “Malangatana – Vinte e Quatro Poemas”.
 

 

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

SE OS POETAS DESSEM AS MÃOS

 
 

                           
                             Se os Poetas Dessem as Mãos

 

Se os Poetas dessem as mãos
e fechassem o Mundo
no grande abraço da Poesia,
cairiam as grades das prisões
que nos tolhem os passos,
os arames farpados
que nos rasgam os sonhos,
os muros de silêncio,
as muralhas da cólera e do ódio,
as barreiras do medo,
e o Dia, como um pássaro liberto,
desdobraria enfim as asas
sobre a Noite dos homens.

Se os Poetas dessem as mãos
e fechassem o Mundo
no grande abraço da Poesia.

 
 

Fernanda de Castro, in "Ronda das Horas Lentas".

 

 


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

PEDRO HOMEM DE MELLO

 
 
 

Pedro Homem de Mello nasceu no Porto no dia 6 de Setembro de 1904. Viveu até 5 de Março de 1984.

Foi poeta, professor, jornalista e um estudioso do folclore português.

Formou-se em Direito na Universidade de Lisboa.

Colaborou nas revistas literárias “Presença” e “Altura”.

A sua obra poética está compilada no volume “Poesias Escolhidas”. Escreveu, também, “A Poesia na Dança e nos Cantares do Povo Português” e “Danças de Portugal”.

Durante vários anos apresentou na RTP um programa de folclore, de sua autoria.

Amália Rodrigues seria a imortal intérprete dos seus famosos poemas: “Povo que Lavas no Rio” e “Havemos de ir a Viana”.

Recebeu os seguintes galardões: “Prémio Antero de Quental”, “Prémio Ocidente” e o “Prémio Nacional de Poesia”.


Povo que lavas no rio



Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!
 
Meu cravo branco na orelha!
Minha camélia vermelha!
Meu verde manjericão!
Ó natureza vadia!
Vejo uma fotografia...
Mas a tua vida, não!


Fui ter à mesa redonda,

Bebendo em malga que esconda
O beijo, de mão em mão...
Água pura, fruto agreste,
Fora o vinho que me deste,
Mas a tua vida, não!


Procissões de praia e monte,

Areais, píncaros, passos

Atrás dos quais os meus vão!

Que é dos cântaros da fonte?

Guardo o jeito desses braços...

Mas a tua vida, não!


 
Aromas de urze e de lama!

Dormi com eles na cama...

Tive a mesma condição.

Bruxas e lobas, estrelas!

Tive o dom de conhecê-las...
Mas a tua vida, não!


Subi às frias montanhas,
Pelas veredas estranhas

Onde os meus olhos estão.
Rasguei certo corpo ao meio...

Vi certa curva em teu seio...
Mas a tua vida, não!
 

Só tu! Só tu és verdade!
Quando o remorso me invade
E me leva à confissão..
Povo! Povo! eu te pertenço.

Deste-me alturas de incenso,
Mas a tua vida, não!
 

Povo que lavas no rio,
Que vais às feiras e à tenda,
Que talhas com teu machado,
As tábuas do meu caixão,
Pode haver quem te defenda,
Quem turve o teu ar sadio,
Quem compre o teu chão sagrado,
Mas a tua vida, não!
 
 
Pedro Homem de Mello
 
 
 
 
 
 
 

 

 

MALMEQUER

MALMEQUER Português, ó malmequer Em que terra foste semeado? Português, ó malmequer Cada vez andas mais desfolhado Ma...