quarta-feira, 30 de abril de 2014

Despedida

 
 

 
     Despedida

 
Uma harpa envelhece.
Nada se ouve ao longo dos canais e os remadores
sonham junto às estátuas de treva.
A tua sombra está atrás da minha sombra e dança.
Tocas-me de tão longe, sobre a falésia, e não sei se
foi amor.

 
Certo rumor de cálices, uma súplica ao dealbar das
ruínas,
tudo se perdeu no solitário campo dos céus.
Uma estrela caía.
Esse fogo consumido queima ainda a lembrança do
sul, a sua extrema dor anoitecida.
Não vens jamais

 
O teu rosto é a relva mutilada dos passos em que me
entristeço, a absoluta condenação.
Chove quando penso que um dia as tuas rosas floriam
no centro desta cidade.
Não quis, à volta dos lábios, a profanação do jasmim,
as tuas folhas de outubro.
Ocultarei, na agonia das casas, uma pena que esvoaça,
a nudez de quem sangra à vista das catedrais.
O meu peito abriga as tuas sementes, e morre.
Esta música é quase o vento.

 
José Agostinho Baptista, in “Paixão e Cinzas”


terça-feira, 29 de abril de 2014

A Dança e a Alma

 
 



A Dança e a Alma

A dança? Não é movimento
súbito gesto musical.
É concentração, num momento,
da humana graça natural

No solo não, no éter pairamos,
nele amaríamos ficar.
A dança-não vento nos ramos
seiva, força, perene estar
um estar entre céu e chão,
novo domínio conquistado,
onde busque nossa paixão
libertar-se por todo lado...

Onde a alma possa descrever
suas mais divinas parábolas
sem fugir a forma do ser
por sobre o mistério das fábulas.

 

Carlos Drummond de Andrade, in “Viola de Bolso”

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Mirabai

 

Mirabai (1498-1547) nasceu na província do Rajasthan, Índia.
 
Foi a mais importante poetisa hindu da Índia medieval.
 
Os seus poemas, embora com características populares, são
estudados em Universidades e debatidos entre os intelectuais hindus
da actualidade, comprovando a importância histórica e literária da
sua obra.
 
São poemas devocionais (Bhaktas) e fazem parte da tradição
religiosa denominada Bhakti Yoga, dirigidos a Krishna, pelo qual 
Mirabai tinha absoluta devoção e considerava ser a encarnação de 
Deus.
 
As penas de pavão que ornamentam a coroa do deus, são,
simbolicamente, usados para ilustrar os seus poemas.
 
Compôs poesia erótico-sacra e canções espirituais, nas quais  é
celebrada a ligação erótica e mística com a divindade.
 

Foi raínha da cidade de Chittor, a mais importante de Rajpur, na
Índia.
 
 
 
 

Inquebrável, Ó meu Senhor,
é o amor
que me prende a ti.
Como um diamante,
ele quebra o martelo que o atinge.
Como o brilho que se prende ao ouro,
meu coração vai até ti.
Como o lótus vive na água,
eu vivo em ti.
Como o pássaro
que contempla a noite inteira
a lua que passa,
eu me perdi, morando em ti.
Ó meu Amado.

Mirabai


 
 
 
 
 
 
 

 
 
 

 
 

 

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 

 

domingo, 27 de abril de 2014

Oswald de Andrade

 
 

Oswald de Andrade (1890-1954) nasceu em São Paulo, Brasil.

Foi poeta, romancista, ensaísta, contista, dramaturgo e crítico literário.

Em 1911, fundou o semanário de crítica e humor “O Pirralho”, no qual publicou os seus primeiros trabalhos. Em 1927, lançou a revista de Antropofagia.

Participou nos manifestos “Pau-Brasil” e “Antropófago”.

Algumas das suas obras: “Os Condenados”; “Memórias Sentimentais de João Miramar”; “Pau-Brasil”; “Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade”; “Serafim Ponto Grande”; “O Rei da Vela”.

Em 1922, foi um dos promotores da “Semana de Arte Moderna”, realizada em São Paulo, distinguindo-se como um dos maiores nomes do modernismo literário brasileiro.

Foi convidado para proferir o discurso de homenagem no banquete oferecido ao escritor português António Ferro, por ocasião da sua visita ao Brasil.

Foi membro da “Sociedade Brasileira dos Homens de Letras”.


 
Palavras de Oswald de Andrade:
"Aprendi com meu filho de 10 anos que a poesia é a descoberta das coisas que nunca vi."

 
Canto de regresso à pátria

Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.



Oswald de Andrade, in “Poesias Reunidas”.

sábado, 26 de abril de 2014

Rosa Alice Branco




Rosa Alice Branco nasceu na cidade de Aveiro, em1950.

Poetisa e professora, é doutorada em Filosofia Contemporânea.

Participou no Grupo de Estudos de Semiótica e Poética do Porto.

Da sua bibliografia destacam-se os livros: “Animais da Terra”; “A Mão Feliz. Poemas D(e)ícticos”; “Somos o teu Gado, Senhor”.

Reuniu os seus poemas na colectânea: “Soletrar do Dia”.

Rosa Alice Branco representou Portugal no “Festival de Poesia Pamassus”, que integrou as celebrações dos Jogos Olímpicos 2012, em Londres.

 

 
Palavras de Rosa Alice Branco:

“A Poesia como celebração do quotidiano é um bom sintoma de outra postura de vida. As palavras despem-se do medo de serem apenas palavras, mas passamos de uma dimensão representativa a uma dimensão mais apresentativa. Há toda uma intimidade, uma aproximação furtiva ao quotidiano que lhe retira a banalização do olhar.”



 
        Por um dia de Inverno

 
O homem do talho morreu. Deixou mulher,
dois filhos e carne fresca estendida como roupa
no varal. Lembro-me do orgulho com que passava a mão
pelo cachaço. Lembro-me da peixeira
que nos acordava de manhã «peixe fresco
tão vivinho» e como era caro o estertor do linguado.
Mesmo as alfaces são frescas depois de mortas,
o molho de nabiças, até de uma cenoura esperamos
que seja fresca ali no prato com o linguado rigorosamente
apartado das espinhas. Tão fresco! O homem do talho
vai a enterrar depois do almoço. Agora jaz na capela mortuária
de rosto descoberto para a família e os curiosos. O homem
do talho morreu cansado, mas agora está fresco:
foi abatido ontem, será embalado às quatro da tarde.

 
Rosa Alice Branco, in "Da Alma e dos Espíritos Animais"

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Português ó Malmequer

 
 

Português ó Malmequer    
 
Português, ó malmequer
Em que terra foste semeado?
Português, ó malmequer
Cada vez andas mais desfolhado

Malmequer é branco, branco
Que outra cor querem que escolha
Se te querem ver bonito
Por que te arrancam as folhas?

Por muito humilde que sejas
Malmequer ó meu amigo
Lá vem o dia da espiga
Que tens honras de trigo

Malmequer tens pouca flor
Mesmo assim és um valente
Antes ser dez réis de flor
Do que ser dez réis de gente

És uma flor do povo
Vem do povo a tua força
Estás bem agarrado à terra
Não há vento que te torça

Malmequer ou bem-me-quer
És a flor mais desprezada
Uns com muito, outros com pouco
E a maioria sem nada

És branco da cor da paz
Mas seja lá por que for
Há para aí uns malmequeres
Que andam a mudar de cor

Regam-te a seiva com esperança
Mesmo assim não és feliz
Há muitas ervas daninhas
Que te atacam a raiz

Malmequer se fores regado
Num dia de muito Sol
Cresce, cresce, cresce, cresce
Para seres um girassol.

 

 

Letra da canção escrita, em 1972, pela parceria teatral Paulo da Fonseca, César de Oliveira e Rogério Bracinha, interpretada pelo actor Raúl Solnado na Revista “P´rá Frente Lisboa”, então em cena no demolido “Teatro Monumental”, em Lisboa, Portugal.

 


quinta-feira, 24 de abril de 2014

Queixa das Almas Jovens Censuradas

 
 



Queixa das Almas Jovens Censuradas

 

Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.

Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.

Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.

Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo

Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.

Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.

Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.

Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.

Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.

Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.

 

Natália Correia, in “Poesia Completa”
Ilustração: pintura da artista plástica chilena Violeta Parra.