sábado, 31 de março de 2018

O RIO EGOCÊNTRICO


O rio egocêntrico

O rio era caudaloso e fluido. Deslizava rodeando habilmente os obstáculos, sem que nada pudesse travar o seu curso.
Atravessou vales, gargantas, bosques, selvas e desfiladeiros. Imparável, seguia o seu curso. Mas, de súbito, chegou ao deserto e as suas águas começaram a desaparecer na areia. O rio ficou espantado. Não havia forma de atravessar o deserto e desejava desaguar noutro rio. O que fazer? Cada vez que as suas águas chegavam à areia, esta engoli-as. Será que não havia forma de atravessar o deserto? Então, ouviu uma misteriosa voz que dizia:

- Se o vento atravessa o deserto, tu também podes fazê-lo.

- Mas como? - perguntou o rio, desconcertado.

- Permite que o vento te absorva. Diluir-te-ás nele e, depois, choverás para além das areias. Lá formar-se-á outro rio e este desaguará noutro maior.

- Mas continuarei a ser eu? – perguntou o rio angustiado, temendo perder a sua identidade.

- Serás tu e não serás tu. Serás a água que chova, que é a essência, mas o rio será outro.

- Então recuso-me a fazer isso. Não quero deixar de ser eu!

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Em qualquer ser humano está a essência e a personalidade, o eu-real e o eu-social, o ser e o ego. A essência é transpessoal, o ego, porém, é pessoal e nasce do vínculo com o corpo, do aparelho psíquico, dos apegos, das aversões e de outros factores. 

O ego dominante renega a ideia do seu desvanecimento, mas quando o ego vai minguando graças ao trabalho interior que desencadeia a consciência clara e a compreensão profunda, vai perdendo o medo à ideia da sua dissolução, já que a pessoa vive mais do ser do que da sua burocracia egocêntrica.



in “Os melhores contos espirituais do Oriente” – Ramiro Calle 











sexta-feira, 30 de março de 2018

ORLANDO NEVES - As lágrimas



ORLANDO NEVES
(Portalegre, Portugal, 1935 - Matosinhos, 2005)
Escritor, poeta, dramaturgo, tradutor

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As lágrimas

Exaltemos as lágrimas. Na pele das veias,
bom dia, águas. Gratidão ao rosto, às cores,
ao sulco nos olhos. Porquê este ardor, este
temor da erva pisada? Adormecem comigo,

meigas fábricas de quietude e solidão
no calmo azul branco da sua breve cor.
Que longe se vão no ar amargo, sob o ímpeto
delirante de as transformar em leis extintas,

ironias ou júbilos. Rolem ou finjam
incansáveis trabalhos ou dores, assim
conspiram em outras portas, outros mistérios.

Perco-as entre conversas, o sono, o amor.
Aos olhos desertos sua ausência os desgasta.
Louvemos nas lágrimas o seu fulgor vão.





quinta-feira, 29 de março de 2018

HERBERTO HELDER - Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos



HERBERTO HELDER
(Funchal, Portugal, 1930 – Cascais, 2015)
Poeta

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Foi um dos grandes cultores da poesia concreta, ou poesia experimental.
Estreou-se com o volume de poemas O Amor em Visita, 1958, e com a colectânea de contos Os Passos em Volta, 1963.

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Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos

Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias internos.

Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas grutas
o sangue que se agrava.

Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva
aos precipícios de Agosto, e a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar
palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas.
Cada dia é um abismo atómico.

E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro
que talha no calcário a rosa congenital.
A carne, asfixiam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios. E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.


quarta-feira, 28 de março de 2018

MÁRIO VIEGAS - Clarividência fulminante


MÁRIO VIEGAS
(Santarém, Portugal, 1948 — Lisboa, 1996)
Actor, encenador, declamador

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Mário Viegas - Clarividência fulminante


O grande provocador seria, pelo seu talento, lucidez, audácia, desapossamento, Mário Viegas. Actor, encenador, declamador, criador de génio sucumbiu na década de 90 (aos 48 anos) de doença, de desamor, de desesperança, de desespero. (…)

Preserva com ferocidade as hierarquias e o valor individual:

«Nunca gostei de elencos por ordem alfabética ou de entrada em cena. A Maria Cachucha não é a mesma coisa que a Amélia Rey Colaço, o Zé da Esquina não é a mesma coisa que o Alves da Cunha. Quando se põem, por exemplo, actores a vender bilhetes e cafés, tira-se-lhes o mistério. Isso faz muito mal ao teatro. As pessoas respeitam-me porque não me vêem em chachadas dessas, não me vêem em telenovelas nem em concursos, nem a fazer publicidade.»

Manter os valores escolhidos (plasmados em interpretações como O suicidário, Ubu, Baal, À espera de Godot) faz-se-lhe motivo de apaziguamento: 

«Não é em vão que uma pessoa se abandalha, se comercializa…se se pensa que o que é preciso é ganhar o nosso, que é tudo a mesma coisa, que não há ética nem princípios, acaba por se criar má consciência, mesmo que se tenha muito dinheiro no banco.»

Aterrado com a boçalidade mercantilista que o emerge, torna-se dos primeiros a denunciar, entre nós, o nivelamento que, a coberto da democracia, «achincalha tudo, faz tábua rasa de tudo. Parece que se instalou uma central secreta para destruir a nossa literatura, as nossas artes, o nosso convívio, os nossos afectos… essa central tem uns escribas nos órgãos de informação que estão a fazer um péssimo trabalho. Há da sua parte verdadeira xenofobia, verdadeiro racismo contra o que é português. Julgam sem conhecer. Um novo fascismo está a germinar na democracia!»

De clarividência fulminante, acolhia-se àqueles de quem gostava, por isso gostava de tão poucos, como a entidades de ansiada protecção.
Foi um dos portugueses que mais riu, feriu, se feriu entre nós.




in”Nascido no Estado Novo” - FERNANDO DACOSTA -(Caxito, Angola, 1945), romancista, dramaturgo, jornalista.


terça-feira, 27 de março de 2018

WALTER BENJAMIN - Há em toda a beleza uma amargura



WALTER BENJAMIN
(Alemanha, 1892 — Espanha, 1940)
Ensaísta, tradutor, filósofo

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Estudou filosofia em Berlim, Munique e Freiburg e doutorou-se em Berna (Suíça) no ano de 1919, com a tese A Crítica de Arte no Romantismo Alemão

A ascensão de Hitler e do nazismo obrigaram-no a fugir de Berlim, em 1933. Residiu sobretudo em Paris, com passagens por Itália e por Espanha. O medo de ser entregue à Gestapo e as dificuldades em passar a fronteira entre França e Espanha conduziram-no ao suicídio em 1940. 

Como legado deixou-nos uma obra filosófica de uma impressionante actualidade, onde se cruzam os assuntos que tentava compreender e estudar: história, modernidade, arte, tecnologia, literatura dos séculos XIX e XX e a ascensão da cultura de massas, assim como numerosas traduções e análises literárias a Baudelaire, Brecht, Hölderlin, Kafka e Proust.


in “Assírio & Alvim” (excerto)

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Há em toda a beleza uma amargura

Há em toda a beleza uma amargura
secreta e confundida que é latente
ambígua indecifrável duplamente
oculta a si e a quem na olhar obscura

Não fica igual aos vivos no que dura
e a não pode entender qualquer vivente
qual no cabelo orvalho ou brisa rente
quanto mais perto mais se desfigura

Ficando como Helena à luz do ocaso
a língua dos dois reinos não lhe é azo
senão de apartar tranças ofuscante

 Mas à tua beleza não foi dado
 qual morte a abrir teu juvenil estado
 crescer e nomear-se em cada instante?



Tradução: Vasco Graça Moura



segunda-feira, 26 de março de 2018

IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS - Brasil




Igreja de São Francisco de Assis

Construção iniciada em 1766, pela Ordem Terceira de São Francisco de Assis - a primeira ordem terceira criada em Ouro Preto, que remonta a 1745. Obra-prima de António Francisco Lisboa, que assina o projecto e o risco da portada. No tecto da nave central pinturas do mestre Manuel da Costa Ataíde, representando a glorificação de Nossa Senhora. Destaque para o coroamento da porta principal, escultura em pedra-sabão e, na sacristia, o lavabo, ambos esculpidos por Aleijadinho. 

A Igreja São Francisco de Assis foi um dos primeiros bens tombados individualmente em Ouro Preto, em âmbito Nacional em 1938. O tapa-vento foi executado por Manoel Gonçalves em 1806, e as portas principais e laterais, por Lucas Evangelista de Jesus. Datam de 1826 os ladrilhos dos corredores, e os altares laterais foram confeccionados entre 1829 e 1890.



in “Ouro Preto” (excerto/adaptação)




domingo, 25 de março de 2018

AMBROSE BIERCE - O juiz e o acto tresloucado


AMBROSE BIERCE
(Ohio, EUA, 1842 – 1913)
Escritor, crítico satírico, jornalista

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Jornalista de acerado estilete, contista de raro estilo, polemista temível e lexicógrafo do Diabo, foi dado como desaparecido na revolução mexicana. Este mistério figura entre os enigmas da história literária norte-americana.

Não recebeu qualquer instrução além da que obteve nos livros do pai, camponês pobre.

Quando nos EUA deflagra, em 1861, a guerra civil provocada pela abolição da escravatura, Bierce alista-se como voluntário nas tropas abolicionistas, participando em muitas lutas e distinguindo-se nas batalhas do Oeste.

Tanto os seus primeiros livros, onde já há obras-primas, como mais tarde o célebre Dicionário do Diabo ou as Obras Completas, nunca terão, em vida do escritor, grande êxito junto do público. Desde a Guerra da Secessão, Bierce, misantropo e herdeiro da tradição satírica de Juvenal a Swift, sempre castigou sem piedade e sem excepções a estupidez humana. 

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O juiz e o acto tresloucado

Um Juiz, que durante muitos anos havia procurado em vão uma oportunidade de se distinguir por um acto infame – e que nenhum litigante achava digno de ser subornado – sentou-se um dia no Banco, lamentando a sua pouca sorte e ameaçando pôr fim à vida caso as coisas não melhorassem. De súbito, encontrou-se frente a uma figura terrível, toda amortalhada, cuja palidez e olhar pétreo o tolheram com horrível apreensão.

- Quem és – balbuciou – e ao que vens?

- Sou o Acto Tresloucado – foi a resposta sepulcral -; podes cometer-me.

- Não – disse o Juiz, pensativo -; isso seria cometer uma irregularidade. Hoje não me acometo às funções de magistrado.




in “Esopo emendado & outras fábulas fantásticas”




sábado, 24 de março de 2018

ADALGISA NERY – Mistério



ADALGISA NERY
(Rio de Janeiro, Brasil, 1905 - 1980)
Poetisa

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Desde a infância demonstra forte sensibilidade poética associada a episódios marcantes de sua vida, como a perda da mãe, aos oito anos.

Em 1952 torna-se a primeira mulher a receber a “Ordem da Águia Asteca”, por suas conferências sobre a poetisa mexicana Juana Inés de la Cruz.

Apesar de acompanhar de perto o movimento modernista nas décadas de 1920 e 1930, sendo musa de artistas plásticos e escritores, o primeiro livro de Adalgisa Nery só é publicado em 1937, com o título Poemas. Este e o livro seguinte, a Mulher Ausente, de 1940, levam a autora a ter sua obra comparada, pelo poeta Manuel Bandeira (1886-1968), à obra da poetisa grega Safo de Lesbos (século VII a.C.), pelo erotismo libertário, e do poeta português Antero de Quental (1842-1891), pelo tom trágico.


in” Enciclopédia Itaú Cultural”

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Mistério

Há vozes dentro da noite que clamam por mim,
Há vozes nas fontes que gritam meu nome.
Minha alma distende seus ouvidos
E minha memória desce aos abismos escuros
Procurando quem chama.

Há vozes que correm nos ventos clamando por mim.
Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome
E eu olho para as árvores tranquilas
E para as montanhas impassíveis
Procurando quem chama.


Há vozes na boca das rosas cantando meu nome
E as ondas batem nas praias
Deixando exaustas um grito por mim
E meus olhos caem na lembrança do paraíso
Para saber quem chama.

Há vozes nos corpos sem vida,
Há vozes no meu caminhar,
Há vozes no sono de meus filhos
E meu pensamento como um relâmpago risca
O limite da minha existência...
na ânsia de saber quem grita.







sexta-feira, 23 de março de 2018

MARIA TERESA HORTA - Poema sobre a recusa



MARIA TERESA HORTA
(Lisboa, Portugal, 1937)
Escritora e poetisa

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Fez parte do grupo Poesias 61.
Publicou diversos volumes de poesia, tendo-se estreado com Espelho Inicial, 1960. 
Foi uma das autoras do livro Novas Cartas Portuguesas, 1971, cuja publicação gerou celeuma devido ao seu espírito libertário.


in “Livro dos Portugueses”
                                
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Poema sobre a recusa

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.




quinta-feira, 22 de março de 2018

HOMENAGEM DE MANUELA PORTO A VIRGINIA WOOLF


MANUELA PORTO
(Lisboa, Portugal, 1908 - 1950)
Declamadora, encenadora, escritora, jornalista

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VIRGINIA WOOLF
 (Reino Unido, 1882 -1941)
Escritora, ensaísta, editora 


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Homenagem de Manuela Porto a Virginia Woolf

No ano de 1882, exactamente quando a rainha Vitória se encontrava em pleno apogeu, bons vinte anos antes que as sufragistas inglesas se lembrassem de fazer distúrbios pelas ruas de Londres, lutando por uma coisa hoje considerada banal em Inglaterra – o voto feminino – nascia no número três de «Hyde Park Gate», Virginia Woolf, uma das mais límpidas e mais singulares do nosso tempo.

Na verdade, sem aquela lúcida inteligência que de muito cedo a forçou a desejar entender, sem aquela espécie de inconformismo que essa compreensão trazia fatalmente consigo, sem aquele toque de genialidade que obrigou a seu espírito a ir na frente dos mais, Virgínia Woolf teria sido uma mulher feliz.

Assim, a sua existência, aparentemente serena, foi uma luta árdua que terminou com um suicídio em 1941.

A vida inteira Virginia Woolf lutou. Lutou pelos chamados direitos femininos, lutou para obter dos outros um pouco de compreensão para pontos de vista que lhe fossem menos familiares, lutou consigo mesma para assenhorear-se completamente daqueles meios de expressão que lhe eram próprios e para conseguir provar que a «verdadeira matéria do romance é qualquer coisa de muito diferente daquilo que uma convenção previamente estabelecida nos habituou a considerar como tal.

Depois da morte dos pais, por alturas do começo do século, Virgínia vai habitar uma pequena casa que em breve se torna o quartel-general de um grupo literário e renovador, com grande repercussão nas letras inglesas, conhecido pelo nome de «o grupo de Bloomsbury».

É indispensável ler com atenção os dois volumes de The Common Reader e muito principalmente ler bem A Room of One´s Own para se formar no nosso espírito uma noção concreta de qual foi o segredo da escritora, aquele segredo que, na opinião de Katherine Mansfield, o artista nunca deve proferir mas que se encontra presente em toda a sua obra tal com um Anjo da Guarda com uma espada de chamas na mão.

No caso de Virginia Woolf esse segredo vale a pena ser decifrado, concretizado, pelo leitor, pois é composto de amor à Vida, de compreensão dos seres, de fé arreigada nas criaturas e de respeito por essa espécie de halo luminoso.

Creio que uma das grandes lutas da escritora foi exactamente conseguir que o halo luminoso, o invólucro translúcido – símbolo da vida – envolvesse a suas personagens como ela afirmava que envolve as criaturas reais. Foi essa uma das suas lutas mais duras e talvez o seu maior triunfo.



in “Mundo Literário” – 1946 (excertos)





quarta-feira, 21 de março de 2018

HENRI MICHAUX – Onde pousar a cabeça?


HENRI MICHAUX
(Bélgica, 1899 – França, 1984)
Poeta, escritor, pintor

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Onde pousar a cabeça?

Um céu
um céu porque já não existe a terra,
sem uma asa, sem penugem, sem uma pena de pássaro, sem névoa

estritamente, unicamente céu
um céu porque já não existe a terra

O horror, o desespero, depois da explosão de grisu na cabeça
depois de não haver mais nada, depois de tudo derrubado, devastado, impossível a saída

Um céu glacialmente céu

Agora obstruído, fechado, atulhado de resíduos
céu por causa das dores de cabeça da terra
desprovida de céu

um céu porque já não existe sítio nenhum onde pousar a cabeça

Impedido, reduzido, escondido, cortado, desfeito, intermitente, irrespirável nas explosões e fumaradas
que já não serve para nada

um céu doravante irrecuperável



Tradução: Herberto Helder

terça-feira, 20 de março de 2018

MÁRIO DIONÍSIO - Para ser lido mais tarde



MÁRIO DIONÍSIO
(Lisboa, Portugal, 1916 - 1993)
Escritor, pintor, professor

Personalidade multifacetada, Mário Dionísio teve uma acção cívica e cultural marcante no século XX português, com particular incidência nos domínios literário e artístico.       

Foi autor de uma obra literária autónoma (poesia, conto, romance). Fez crítica literária e de artes plásticas; realizou conferências, interveio em debates; colaborou em diversas publicações periódicas.

Desempenhou um papel importante na teorização do Neorrealismo, movimento literário que, pelas décadas de 40-50, à luz do materialismo histórico, valorizou a dimensão ideológica e social do texto literário, enquanto instrumento de intervenção e de consciencialização e alcance do movimento neorrealista.


in “Escritores”
***

Para ser lido mais tarde

Um dia
quando já não vieres dizer-me Vem
jantar

quando já não tiveres dificuldade
em chegar ao puxador
da porta quando

 já não vieres dizer-me Pai
 vem ver os meus deveres

quando esta luz que trazes nos cabelos
já não escorrer nos papéis em que trabalho

para ti será o começo de tudo

Uma outra vida haverá talvez para os teus sonhos
um outro mundo acolherá talvez enfim a tua oferenda

Hás-de ter alguma impaciência enquanto falo
Ouvirás com encanto alguém que não conheço
nem talvez ainda exista neste instante

Mas para mim será já tão frio e já tão tarde

E nem mesmo uma lembrança amarga
ou doce ficará
desta hora redonda
em que ninguém repara



segunda-feira, 19 de março de 2018

VOLTAIRE – Tratado sobre a Tolerância



VOLTAIRE
(Paris, França, 1694 - 1778)
Escritor, filósofo

***

Tratado sobre a Tolerância

Os acontecimentos que levaram Voltaire a escrever o seu Tratado sobre a Tolerância poderiam ter passado quase despercebidos. 

Tratava-se de um abuso judicial de uma extrema crueldade, mas nada de muito estranho aos hábitos da monarquia absoluta do Século das Luzes. Há um jovem huguenote que se suicida e uma multidão que se dispõe a linchar o pai, que acusa de ter assassinado o filho porque este se tornara católico. Não há provas nem indícios nesse sentido. Pelo contrário, Jean Calas é considerado um bom pai e tolerante em relação à orientação religiosa do filho.

Mas o poder judicial cede ao fanatismo popular e Jean Calas é executado. O génio de Voltaire consegue extrair do episódio ilações cuja validade permanece até aos nossos dias.



in “Relógio de Água”


domingo, 18 de março de 2018

JOÃO JOSÉ COCHOFEL - Tarde



JOÃO JOSÉ COCHOFEL
(Coimbra, Portugal, 1919 – 1982)
Poeta, ensaísta, crítico literário

***

Pertenceu à geração neo-realista coimbrã e foi um dos organizadores da colecção de poesia do Novo Cancioneiro em 1941.

Ajudou a fundar e colaborou em várias revistas literárias, não só como poeta mas também como crítico literário e musical.

Foi director da Academia dos Amadores de Música de Lisboa e da Sociedade Portuguesa de Escritores.

Deixou incompleto o Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e de Teoria Literária, obra que organizou e dirigiu desde o início da sua publicação, em 1971.

in “Lusofonia poética”

***

Tarde

Teus olhos húmidos eram lagos
em que nosso desejo se mirava.
Tua boca entreaberta era a mensagem
do teu corpo moço que se dava.

Teu hálito quente
embrulhado de desejo
vinha de não sei lá que profundezas
em que de amor tuas entranhas se abrasavam.

E havia, amor, a envolver-nos,
essa solidão enorme
entre pinheiros, céu e terra quente
da tarde que dorme ...