segunda-feira, 30 de abril de 2018

NICOLAU TOLENTINO - Sátira aos Penteados Altos



NICOLAU TOLENTINO
(Lisboa, Portugal, 1740 - 1811)
Poeta

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Notabilizou-se na sátira social, em que se revela um cronista observador mas indulgente e amável, valendo a sua arte pela justeza da linguagem, vazada numa musicalidade natural digna do melhor classicismo com que pintou os deliciosos quadros de costumes, pondo a nu o ridículo da sociedade do seu tempo.


in “Portugueses Célebres”

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Sátira aos Penteados Altos

Chaves na mão, melena desgrenhada,
Batendo o pé na casa, a mãe ordena
Que o furtado colchão, fofo e de pena,
A filha o ponha ali ou a criada.

A filha, moça esbelta e aperaltada,
 Lhe diz coa doce voz que o ar serena:
- «Sumiu-se-lhe um colchão? É forte pena;
 Olhe não fique a casa arruinada...»

- «Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
Já a mãe não tem mãos?» E, dizendo isto,

Arremete-lhe à cara e ao penteado.
Eis senão quando (caso nunca visto!)
Sai-lhe o colchão de dentro do toucado!...



in “Antologia Poética”


domingo, 29 de abril de 2018

MANUEL DA FONSECA - Romance do Terceiro-Oficial de Finanças



MANUEL DA FONSECA
(Santiago do Cacém, Portugal, 1911 — Lisboa, 1993)
Poeta, contista, romancista

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Integrado de início na corrente neo-realista, enveredou depois para um regionalismo expresso simbolicamente através da vegetação castigada e das pessoas sem fortuna nem esperança.


in” Portugal Século XX”
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Romance do Terceiro-Oficial de Finanças

Ah! as coisas incríveis que eu te contava
assim misturadas com luas e estrelas
e a voz vagarosa como o andar da noite!

As coisas incríveis que eu te contava
e me deixavam hirto de surpresa
na solidão da vila quieta!...
Que eu vinha alta noite
como quem vem de longe
e sabe o segredo dos grandes silêncios
- os meus braços no jeito de pedir
e os meus olhos pedindo
o corpo que tu mal debruçavas da varanda!...

(As coisas incríveis eu só as contava
depois de as ouvir do teu corpo, da noite
e da estrela, por cima dos teus cabelos.
Aquela estrela que parecia de propósito para enfeitar os teus cabelos
quando eu ia namorar-te...)

Mas tudo isso, que era tudo para nós,
não era nada da vida!...
Da vida é isto que a vida faz.
Ah! sim, isto que a vida faz!...
- isto de tu seres a esposa séria e triste
de um terceiro-oficial de finanças da Câmara Municipal!...


sábado, 28 de abril de 2018

AFONSO LOPES VIEIRA – Portugal e Lord Byron



AFONSO LOPES VIEIRA
(Leiria, Portugal, 1878 — Lisboa, 1946)
Poeta
     
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Portugal e Lord Byron

A nossa sensibilidade portuguesa sangrou com as injúrias do grande romântico, mas nunca as contrabalançou com as homenagens que ele nos rendeu. E, sobretudo, nunca atentou na emenda que Byron fez em nota nas edições posteriores do Cavaleiro Haroldo à mais grave e mais injusta acusação lançada aos portugueses. “Pintei os portugueses tal qual os vi; mas, desde então, fizeram progressos, pelo menos na coragem: isso é evidente”.

A Guerra Peninsular revelou-lhe o que não pudera ter visto na paz. Essa emenda absolve o maior crime do poeta para connosco. Ninguém esqueceu as injúrias de Byron, mas poucos repararam no que lhe devemos como Portugueses. 

A celebridade universal de Sintra a ele se deve. Foi nessas instâncias do Cavaleiro Haroldo que o Eden glorioso começou a ser celebrado no Mundo. Este sentimento íntimo de gratidão existia em todos os visitantes intelectuais de Sintra, que faziam do Lawrence um lugar de peregrinação. Mas foi para a Poesia Portuguesa que Lord Byron desabrochou a mais pura sensibilidade da sua alma.

Camões era para ele o poeta que não tinha a vã, fingida chama. Assim o diz nos versos da oferta das obras do Poeta a uma senhora. (Não deixa de ser curioso que tenha havido e haja portugueses para os quais a chama de Camões é fingida e vã).

Esse encanto de Byron pela nossa poesia revelou-se ainda na versão da quadra popular Chamaste-me tua vida, que vem nas suas obras com o título From the Portuguese. Foi certo que nesta versão que Musset a conheceu para a traduzir no seu Fantasio, fazendo confessar a um personagem dessa comédia que nunca dizia tais versos sem ter vontade de amar alguém.

Em suma, a minha sensibilidade de português absolve Byron – em homenagem a Camões e ao lirismo imortal do nosso Povo.



in “Mundo Literário”-  1946




sexta-feira, 27 de abril de 2018

MILLÔR FERNANDES – Pensar custa



MILLÔR FERNANDES
(Rio de Janeiro, Brasil, 1923 - 2012)
Dramaturgo, humorista, poeta, artista plástico

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Pensar Custa

Pensar é a todo momento e a todo custo. Pensar dói, cansa e só traz aborrecimentos. Melhor é não pensar. Mas pensar não é facultativo. Se o cérebro, a mínima parte dele que seja, deixa de estar alerta por um momento, penetram lá, como parasitas difíceis de erradicar, «ideias» vindas da imprensa, do rádio, da televisão, da propaganda geral, dos produtos em série, do consumo degenerado, dos doutores em lei, arte, literatura, ciência, política, sociologia.

Essa massa de desinformação, não só inútil como nociva, nos é, aliás, imposta de maneira criminosa nos primeiros anos de nossa vida.

E se, algum dia, chegamos a pensar no verdadeiro sentido do termo, todo o restante esforço da existência é para nos livrarmos de uma lamentável herança cultural. Pois, infelizmente, o cérebro humano é um dos poucos órgãos do corpo que não têm uma válvula excretora. E as fezes culturais ficam lá, nos envenenando pelo resto da vida, transformando o mais complexo e mais nobre órgão do corpo numa imensa fossa, imunda e fedorenta. Um lamentável erro da Criação.



in "O Livro Vermelho dos Pensamentos de Millôr"





quinta-feira, 26 de abril de 2018

MIGUEL TORGA - Humanidade às Cegas



MIGUEL TORGA
(São Martinho de Anta, Portugal, 1907 - Coimbra, 1995)
Poeta, escritor

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Humanidade às Cegas

Tanto jornal, tanta rádio, tanta agência de informações, e nunca a humanidade viveu tão às cegas. Cada hora que passa é um enigma camuflado por mil explicações. A verdade, agora, é uma espécie de sombra da mentira. E como qualquer de nós procura quase sempre apenas o concreto, cada coisa que toca deixa-lhe nas mãos o simples negativo da sua realidade.




in “Diário”

quarta-feira, 25 de abril de 2018

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - A opinião em palácio



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
(Itabira, Brasil, 1902 - Rio de Janeiro, 1987)
Poeta, contista

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A OPINIÃO EM PALÁCIO

O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública.

― Chamem a Opinião Pública ― ordenou aos serviçais.

Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a Opinião Pública deixara de frequentar lugares públicos. Recolhera-se ao Beco sem Saída, onde, furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando.

Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde Sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse:

― Preciso de ti.

A Opinião, muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-lo. O Rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correcção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: não tinha opinião.

― Vou te obrigar a ter opinião ― disse o Rei, zangado.

― Meus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem o teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.

E virando-se para os serviçais:

― Levem esta senhora para o Curso Intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.




in “Contos Plausíveis”
Imagem: Carlos Drummond de Andrade - pintura de Mazé Leite.




terça-feira, 24 de abril de 2018

FRANZ KAFKA – A porta da lei



FRANZ KAFKA
 (Praga, Império Austro-Húngaro, 1883 Áustria, 1924)
Escritor

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A porta da lei

DIANTE da lei está o guarda da porta. Apresenta-se um aldeão, que pede para entrar na lei. Mas o guarda diz-lhe que de momento não lhe pode permitir a entrada. O homem põe-se a reflectir, e depois pergunta se o deixarão entrar mais tarde. «É possível, diz o guarda, mas não agora». O guarda sai de diante da porta, aberta como sempre, e o homem baixa-se para espreitar o interior. O guarda dá conta disso, e ri. «Se tanto te seduz, experimenta entrar sem o meu consentimento. Mas fixa bem isto: sou muito poderoso. E sou apenas o último dos guardas. Diante de cada sala há guardas cada vez mais poderosos, e eu próprio não posso suportar o olhar do terceiro depois de mim». 

O aldeão não contava com tais dificuldades; então a lei não deve ser acessível a todos? Mas olhando com mais atenção o guarda, o casaco de peles, o nariz afilado, a barba de Tártaro comprida, rara e negra, acaba por preferir esperar, até que lhe permitam a entrada. O guarda dá-lhe um banco e fê-lo sentar diante da porta, um pouco de lado. E ali ele fica sentado, dias e anos.

Faz numerosas tentativas para ser admitido no interior, e aborrece o guarda com as suas súplicas. Por vezes o guarda submete-o a pequenos interrogatórios, faz-lhe perguntas sobre a sua terra e sobre muitas outras coisas, mas são perguntas que lhe lança com indiferença, com ares de grande senhor. E acaba sempre por lhe repetir que ainda não o pode deixar entrar. O homem, que se tinha bem para a viagem, emprega todos os meios, mesmo os mais dispendiosos, para subornar o guarda. Este aceita tudo, é certo, mas diz-lhe sempre: «Aceito, mas é para que tu fiques bem certo de nada teres omitido». 

Durante anos e anos, o homem observa o guarda, quase sem interrupção. Esquece os outros guardas. O primeiro parece-lhe o único obstáculo. Nos primeiros anos, amaldiçoa em altas vozes a sua pouca sorte. Mais tarde, começando a envelhecer, limita-se a resmungar por entre dentes. Torna-se infantil e, como à força de observar o guarda durante anos e anos, acabou por conhecer até as pulgas do seu casaco de peles, pede às pulgas que o auxiliem e façam o guarda mudar de opinião; por fim a sua vista começa a diminuir, e já não sabe se faz escuro à sua volta ou se são os olhos que o enganam. 

Mas agora distingue bem na obscuridade uma gloriosa luminosidade que jorra eternamente da porta da lei. Já lhe não resta muito tempo de vida. Antes de morrer, todas as experiências de tantos anos, acumuladas na sua cabeça, vão culminar numa pergunta que até aí nunca se atrevera a fazer ao guarda. Faz-lhe um sinal, porque já não pode endireitar o corpo anquilosado. 

O guarda da porta tem de se inclinar muito, porque a diferença de estatura é inteiramente em prejuízo do aldeão. «Que mais queres tu saber? pergunta o guarda. És insaciável». «Se todos aspiram à lei, diz o homem, como é que durante todos estes anos ninguém senão eu pediu para entrar?». O guarda da porta, sentindo que o fim do homem está próximo, brada-lhe ao ouvido, para atingir melhor o tímpano quase inerte: «Aqui só tu podias entrar, porque esta entrada era feita só para ti. Agora vou-me embora, e fecho a porta».



Tradução: António Casais Monteiro 


segunda-feira, 23 de abril de 2018

MARIA ALBERTA MENÉRES - As pedras



MARIA ALBERTA MENÉRES
(Vila Nova de Gaia, Portugal, 1930)
Professora, jornalista, escritora

Tem uma vasta obra poética, estando representada em várias antologias literárias nacionais e estrangeiras. Foi professora dos Ensinos Básico e Secundário nas disciplinas de Língua Portuguesa e História. 

É autora de inúmeros programas televisivos para crianças, tendo sido Directora do Departamento de Programas Infantis e Juvenis da RTP de 1974 a 1986. 

Publicou mais de 69 livros para crianças (contos, poesia, BD, teatro e novela). 

Em 1986, recebeu o Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças "pelo conjunto da sua obra literária e pela manutenção de um alto nível de qualidade".


in “Porto Editora” (excerto)
                                 
***

As pedras

As pedras falam? pois falam
mas não à nossa maneira,
que todas as coisas sabem
uma história que não calam.

Debaixo dos nossos pés
ou dentro da nossa mão
o que pensarão de nós?
O que de nós pensarão?

As pedras cantam nos lagos
choram no meio da rua
tremem de frio e de medo
quando a noite é fria e escura.

Riem nos muros ao sol,
no fundo do mar se esquecem.
Umas partem como aves
e nem mais tarde regressam.

Brilham quando a chuva cai.
Vestem-se de musgo verde
em casa velha ou em fonte
que saiba matar a sede.

Foi de duas pedras duras
que a faísca rebentou:
uma germinou em flor
e a outra nos céus voou.

As pedras falam? pois falam.
Só as entende quem quer,
que todas as coisas têm
uma coisa para dizer.

domingo, 22 de abril de 2018

CARLOS DE OLIVEIRA - Soneto da Chuva


CARLOS DE OLIVEIRA
(Belém do Pará, Brasil, 1921 — Lisboa, Portugal, 1981)
Escritor e poeta

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Foi um dos iniciadores do movimento neo-realista.
Estreou-se com o livro de poemas Turismo, 1942 e o romance Casa na Duna, 1943.

***
Soneto da Chuva

Quantas vezes chorou no teu regaço
a minha infância, terra que eu pisei:
aqueles versos de água onde os direi,
cansado como vou do teu cansaço?

Virá Abril de novo, até a tua
memória se fartar das mesmas flores
numa última órbita em que fores
carregada de cinza como a lua.

Porque bebes as dores que me são dadas,
desfeito é já no vosso próprio frio
meu coração, visões abandonadas.

Deixem chover as lágrimas que eu crio:
menos que chuva e lama nas estradas
és tu, poesia, meu amargo rio.



sábado, 21 de abril de 2018

DANTE ALIGHIERI - Poema de Dante para Beatriz



DANTE ALIGHIERI
(Itália, 1265 – 1321)
Poeta e escritor

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Em Florença, cidade onde nasceu e cresceu e onde mais tarde desempenhou parte activa nas lutas políticas que dividiam a cidade. Foi no exílio que Dante escreveu a sua mais famosa obra, A Divina Comédia, tendo falecido pouco depois de a concluir; ao seu funeral compareceram os mais ilustres intelectuais da época.

in “Wook” (excerto)
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Poema de Dante para Beatriz

Tão longamente me reteve Amor
E acostumou-se à sua tirania,
Que, se a princípio parecia rude,
Suave agora me habita o coração.
Assim, quando me tira tanto as forças
Que os espíritos vejo me fugirem,
Então a minha frágil alma sinto
Tão doce, que o meu rosto empalidece,
Pois Amor tem em mim tanto poder
Que faz os meus suspiros me deixarem
E saírem chamando
A minha amada, para dar-me alento.
Onde quer que eu a veja, tal sucede,
E é coisa tão húmil que não se crê.


in “Vida Nova”

sexta-feira, 20 de abril de 2018

JOAQUIM NAMORADO - Prometeu



JOAQUIM NAMORADO
(Alter do Chão, Portugal, 1914 - Coimbra, 986)
Poeta

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Poeta do Novo Cancioneiro, foi um dos iniciadores do neo-realismo coimbrão.
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Prometeu

Abafai meus gritos com mordaças,
maior será a minha ânsia de gritá-los!

Amarrai meus pulsos com grilhões,
maior será minha ânsia de quebrá-los!

Rasgai a minha carne!
Triturai os meus ossos!

O meu sangue será a minha bandeira
e meus ossos o cimento duma outra humanidade.

Que aqui ninguém se entrega
- isto é vencer ou morrer -
é na vida que se perde
que há mais ânsia de viver!

quinta-feira, 19 de abril de 2018

NATÉRCIA FREIRE - Canção do Verdadeiro Abandono



NATÉRCIA FREIRE
(Benavente, Portugal, 1920 - Lisboa, 2004)
Poetisa e escritora

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Estreou-se com o livro de poemas  Meu Caminho de Luz, 1939.
A poesia envolve a sua obra de ficcionista, toda tecida de reminiscências saudosistas.

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Canção do Verdadeiro Abandono
Podem todos rir de mim,  podem correr-me à pedrada,  podem espreitar-me à janela  e ter a porta fechada.  Com palavras de ilusão  não me convence ninguém.  Tudo o que guardo na mão  não tem vislumbres de além.  Não sou irmã das estrelas,  nem das pombas nem dos astros.  Tenho uma dor consciente  de bicho que sofre as pedras  e se desloca de rastos.
 

quarta-feira, 18 de abril de 2018

JOHN STEINBECK – A mente livre está em perigo



JOHN STEINBECK
(EUA, 1902 - 1968)
Escritor

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Prémio Nobel de Literatura de 1962

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A Mente Livre Está em Perigo

A nossa espécie é a única espécie criativa, e tem apenas um único instrumento criativo, a mente e espírito únicos de cada homem. Nunca nada foi criado por dois homens. Não existem boas colaborações, quer em arte, na música, na poesia, na matemática, na filosofia. De cada vez que o milagre da criação acontece, um grupo de pessoas pode construir com base nela e aumentá-la, mas o grupo em si nunca inventa nada. A preciosidade reside na mente solitária de cada homem.

E agora existem forças que enaltecem o conceito de grupo e que declararam uma guerra de exterminação a essa preciosidade, a mente do homem. Através das mais variadas formas de pressão, repressão, culto, e outros métodos violentos de condicionamento, a mente livre tem sido perseguida, roubada, drogada, exterminada. E este é um rumo de suicídio colectivo que a nossa espécie parece ter tomado.

E é nisto que eu acredito: que a mente livre e criativa do homem individual é a coisa mais valiosa no mundo. E é por isto que eu estou disposto a lutar: pela liberdade da mente tomar qualquer direcção que queira, sem direcção. E é contra isto que eu vou lutar com todas as minhas forças: qualquer religião, qualquer governo que limite ou destrua o indivíduo. É isto que eu sou e é esta a minha causa. 

Posso até compreender que um sistema baseado num padrão tenha que destruir a mente livre, pois esta é a única coisa que pode inspeccionar e destruir um sistema deste tipo. Com certeza que compreendo, mas lutarei contra isso por forma a preservar a única coisa que nos separa das restantes espécies. Pois se a mente livre for morta, estaremos perdidos.



in “A Leste do Paraíso” (Citador)





terça-feira, 17 de abril de 2018

CARTA DE BEETHOVEN À “IMORTAL BEM-AMADA”



Carta de Beethoven à “Imortal Bem-Amada”

Bom dia, em Julho 7 (1799)

Embora eu ainda esteja de cama, meus pensamentos voam para ti, Imortal Bem-Amada, ora alegre, ora tristemente, à espera de saberem se o destino nos ouvirá ou não. Só contigo posso viver integralmente, de outro modo não viverei. Sim, estou resolvido a ficar longe de ti, até que possa correr para os teus braços e dizer que estou realmente no lar, minha alma dissolvida na tua, vivendo na terra dos espíritos. – Sim, infelizmente deve ser assim – serás mais resoluta ao saberes da minha fidelidade – a ti; ninguém poderá jamais possuir-me outra vez o coração – ninguém – nunca. Oh! Deus! Porque será mister afastarmo-nos de quem amamos tanto? 

Minha vida em Viena é hoje uma vida miserável – teu amor me faz, ao mesmo tempo, o mais feliz e o mais infeliz dos homens. Na minha idade, careço de uma vida tranquila e segura: poderei ter isso nas condições em que estamos? 

Meu anjo, acabaram de avisar-me que a diligência postal sai todos os dias, e devo encerrar esta para que a possas receber logo. Tem calma; somente mediante a calma consideração da nossa existência é que lograremos alcançar nosso propósito de vivermos juntos – sê calma – ama-me – hoje – ontem – que tristes saudades de ti – de ti – minha vida – meu tudo – adeus! Oh! Continua a amar-me – nunca julgues mal o coração sempre fiel do teu bem-amado L.,
   
   sempre teu
   sempre minha
   sempre um para o outro



in “Grandes Cartas da História” – José Paulo Paes



segunda-feira, 16 de abril de 2018

FRANÇOIS VILLON - Balada das Mulheres de Paris



FRANÇOIS VILLON
(Paris,  França, 1431 — desaparecido em 1463)
Poeta

***
Levou vida boémia de estudante indisciplinado, e tudo indica que se tenha ligado a um bando de malfeitores. Arriscou-se assim, e por várias vezes, a ir para a forca.
Pela força de sua inspiração e a sinceridade de sua emoção, Villon é considerado, em termos cronológicos, o primeiro dos grandes poetas líricos modernos franceses.


in “Larousse”
***

Balada das Mulheres de Paris

Que sejam boas linguareiras
Florentinas e Venezianas,
Para servir de mensageiras,
Também Lombardas e Romanas,
E as Genovesas e as Toscanas.
Aqui vos garante quem diz
(Em que pese às Sicilianas):
Para a boca, só de Paris.

Em bem falar serão vezeiras,
Doutoras, as Napolitanas.
Como boas cacarejeiras
As de Bruges e as Alamanas.
Que sejam Gregas ou Troianas,
E de Hungria ou de outro país,
Aragonezas, Castelhanas;
Para a boca, só de Paris.


Bretãs, Suíças, más palradeiras.
Mais Gascoas e Toulousanas:
Um par das nossas regateiras
Cala-as logo e às Alsacianas,
Às ingresas como às Renanas
(É bastante a lista que eu fiz?),
E às Picardas e às Sabolanas:
Para a boca, só de Paris.


Senhor, às damas mais maganas
O prémio deveis dar, feliz.
Por mais que valham Italianas
- Para a boca, só de Paris.



Tradução: Jorge de Sena