domingo, 29 de setembro de 2019

JOÃO GASPAR SIMÕES - Da Cultura e da Erudição (IV)




JOÃO GASPAR SIMÕES
(Figueira da Foz, Portugal, 1903 — Lisboa, 1987)
Dramaturgo, crítico literário, tradutor

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DA CULTURA E DA ERUDIÇÃO (IV)

(continuação)


Espírito culto, diz-se; não espírito erudito. Espírito erudito é uma contradição. Só o espírito é acessível a um progresso – a uma cultura, no sentido etimológico do termo. 

Com a libertação e o aproveitamento da energia da cultura faz-se uma espécie de digestão. Entre o que se recebeu de fora e o que existia latente no homem realiza-se uma reacção química que tem por fim vivificar e multiplicar as suas as possibilidades criadoras e compreensivas. 

A erudição, pelo contrário, não age quimicamente. Como um bloco pesado e indecomponível por qualquer reagente – a erudição existe na consciência do homem, com se não lhe pertencesse. Nunca, quem a possui, se libertará desse peso que se precipita sobre todas as suas manifestações intelectuais de tal forma que o erudito acaba por nos dar a impressão de uma vida soterrada ou mumificada.
  
(continua)



in – “PRINCÍPIO” – Publicação de Cultura e Política (1930) – Renascença Portuguesa






sábado, 28 de setembro de 2019

MANOEL DE BARROS - Ser Criança




MANOEL DE BARROS
(Brasil, 1916 - 2014)
Poeta

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SER CRIANÇA


Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. 

Quando eu era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.

Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.

Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.



in “Memórias inventadas – As Infâncias de Manoel de Barros”

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

QUADRAS POPULARES





QUADRAS POPULARES 


Pus-me a contar as estrelas
Contei duzentas e doze
Com as duas dos teus olhos
São duzentas e catorze
 
O meu coração é terra
Hei-de mandá-lo cavar
Para semear saudades
Que tenho de te falar

Quem quiser cantar com arte,
Cante a pena que sofrer
A mesma pena o fará
Cantar bem, sem o saber.

Tenho dentro do meu peito
Duas escadas de flores
Por uma descem suspiros
Por outra sobem amores.




quinta-feira, 26 de setembro de 2019

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO - As espécies de mortos




                      FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
(Lisboa, Portugal, 1938 - 2007)
Poetisa, dramaturga, ensaísta, tradutora 


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AS ESPÉCIES DE MORTOS

Há aqueles que morrem
com muitas espadas
no sangue coalhado

Há aqueles na cama
que morrem no corpo
consigo deitado

Há aqueles que morrem
com cavalo e sela
e fato completo

Há aqueles de amor
que morrem de tiro
com o coração

Há aqueles que morrem
por já ter caixão
e ser a idade

Há aqueles de luto
que morrem também
como o defunto

Há aqueles que morrem
com navalha certa
por causa do gume

Há aqueles de armas
que morrem em fila
organizados

Há aqueles que morrem
por não terem cura
e têm parentes

Há aqueles doentes
que morrem no fim
e depois há missa

Há aqueles que morrem
com a mesma morte
e a vida pior

Há aqueles de fome
que por isso morrem
e nem trazem vida

Há aqueles homens
que não têm vida
e morrem pior



quarta-feira, 25 de setembro de 2019

W. H. AUDEN - Rimbaud




W. H. AUDEN
(York, Reino Unido, 1907 — Viena, Áustria, 1973)
Poeta

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RIMBAUD

As noites, os arcos da ferrovia, o feio céu,
Não o sabiam sequer suas horríveis companhias;
A mentira retórica, qual chaminé, o
Queimava em criança: do frio nascera a poesia.

O álcool que o amigo fraco e lírico ofertara
Metodicamente os sentidos desregrou,
Pôs fim ao contra senso ao qual se acostumara;
Até que de lira e fraqueza se afastou.

O verso era uma doença especial do ouvido;
A integridade não era o bastante; ali estava
O inferno da infância: devia tentar de novo.

Agora, cavalgando em África, sonhava
Com um outro eu, um filho, alguém bem-sucedido,
E sua verdade aceita pelos mentirosos.





Tradução: José Paulo Paes, João Moura Jr