sábado, 30 de novembro de 2019

SEGUNDA GUERRA MUNDIAL - PABLO NERUDA - Novo Canto de Amor a Stalingrado


PABLO NERUDA
 (Chile, 1904 - 1973)
 Poeta

***

NOVO CANTO DE AMOR A STALINGRADO

Escrevi sobre a água e sobre o tempo,
descrevi o luto e seu metal acobreado,
escrevi sobre o céu e a maçã,
agora escrevo sobre Stalingrado.

As noivas já guardam no seu lenço
raios de meu amor enamorado,
meu coração agora está no solo,
na fumaça e na luz de Stalingrado.

Já toquei com as mãos a camisa
do crepúsculo azul e derrotado:
agora toco a própria luz da vida
nascendo com o sol de Stalingrado.

Sinto que o velho-jovem transitório
de pluma, como os cisnes adornado,
despe a roupagem de seu mal notório
por meu grito de amor a Stalingrado.

Ponho minh`alma onde quero.
E não me nutro de papel cansado
temperado de tinta e de tinteiro.
Nasci para cantar a Stalingrado.

Minha voz esteve com teus inúmeros mortos
contra teus próprios muros esmagados,
minha voz soou como o sino e o vento
vendo-te morrer, Stalingrado.

Agora americanos combatentes
brancos e escuros como a romã,
matam no deserto a serpente.
Já não estás a sós, Stalingrado.

França volta às velhas barricadas
com pavilhão de fúria hasteado
sobre as lágrimas recém derramadas.
Já não estás a sós, Stalingrado.

E os grandes leões da Inglaterra
voando sobre o mar de furacões
cravam as garras na parda terra.
Já não estás a sós, Stalingrado.

Hoje abaixo de suas montanhas de escarmento
não estão apenas os teus enterrados:
tremendo está a carne de teus mortos
que tocaram tua frente, Stalingrado.

Teu aço azul de orgulho construído,
seu cabelo de planetas coroados,
teu baluarte de pães divididos,
tua fronteira sombria, Stalingrado.

Tua Pátria de louros e martírios,
o sangue no teu esplendor nevado,
o olhar de Stalin sobre a neve
tingida com teu sangue, Stalingrado.

As condecorações que teus mortos
colocaram sobre o peito transpassado
da terra, o estremecimento
da morte e da vida, Stalingrado.

O sal profundo que de novo traz
ao coração do homem estremecido
com a rama de vermelhos capitães
saídos de teu sangue, Stalingrado.

A esperança que se rompe em seus jardins
como a flor da árvore esperada,
a página gravada de fuzis,
as letras de sua luz, Stalingrado.

A torre que concebes nas alturas,
os altares de pedra ensanguentados,
os defensores de tua idade madura,
os filhos de tua pele, Stalingrado.

As águias ardentes de tuas pedras,
os metais por tua alma amamentados,
os adeus de lágrimas imensas
e as ondas de amor, Stalingrado.

Os ossos dos assassinos feridos,
os invasores de pálpebras fechadas
e os conquistadores fugitivos
atrás de sua centelha, Stalingrado.
 
Os que humilharam a curva do Arco
e as águas do Sena transpuseram
com o consentimento do escravo,
se detiveram em Stalingrado.

Os que a bela Praga sobre lágrimas,

sobre o emudecido e o traído,
passaram pisoteando suas feridas,
morreram em Stalingrado.

Os que na gruta grega esculpiram
a estalactite de cristal quebrado
em seu clássico azul escasso,
agora onde estão, Stalingrado?

Os que a Espanha incendiaram e dividiram
deixando o coração encarcerado
dessa mãe de ensinos e guerreiros,
se puseram a seus pés, Stalingrado.

Os que na Holanda, água e tulipas
salpicaram no lodo ensanguentado
e derramaram o açoite e a espada,
agora dormem em Stalingrado.

Os que na branca noite da Noruega
Um uivo de chacal soltaram
incendiando esta gelada primavera,
emudeceram em Stalingrado.

Horror a ti pelo que o ar traz,
o que se há de cantar e o cantado,
horror por tuas mães e teus filhos
e teus netos, Stalingrado. 
Horror ao combatente da névoa,
horror ao comissário e ao soldado,
horror ao céu por traz da tua lua,
horror ao sol de Stalingrado.

Guarda-me um pedaço de violenta espuma,

guarda-me um rifle, guarda-me um arado,
e que o coloquem em minha sepultura
com uma espiga vermelha de teu estado,
para que saibam, se há alguma dúvida,
que morri amando-te e que me tens amado,
e se não estive combatendo em tua cintura
deixo em tua honra esta granada escura,
este canto de amor a Stalingrado.





in “Segunda Guerra Mundial Uma - Antologia Poética – Sammis Reachers


 

sexta-feira, 29 de novembro de 2019

WALTER BENJAMIN - Instinto Humano Deteriorado



WALTER BENJAMIN
(Berlim, Alemanha, 1892 - Portbou, Espanha, 1940)
Filósofo, tradutor, crítico literário
***
INSTINTO HUMANO DETERIORADO

Um estranho paradoxo: as pessoas, quando agem, têm em mente o interesse privado mais mesquinho, mas ao mesmo tempo, no seu comportamento, são mais do que nunca determinadas pelo instinto das massas. E mais do que nunca, o instinto das massas tornou-se errado. O obscuro instinto do animal - como inúmeros episódios o comprovam - encontra a saída para o perigo iminente mas ainda invisível. Em contrapartida, esta sociedade, onde cada um tem apenas em vista o seu próprio interesse mesquinho, sucumbe como uma massa cega, com estupidez animal mas sem a estúpida sabedoria dos animais, a todo o perigo, ainda que muito próximo, e a diversidade dos objectivos torna-se insignificante, ante a identidade das forças determinantes.

Muitas vezes se tem demonstrado que é tão rígida a sua fixação à vida habitual, mas de há muito perdida, que acaba por não se verificar a aplicação efectivamente humana do intelecto, a previdência, até mesmo ante o perigo iminente. Assim a imagem da estupidez completa-se nela: insegurança, ou mesmo perversão dos instintos vitais, e desfalecimento ou até decadência do intelecto.


in “Rua de Sentido Único” – (citador)




quarta-feira, 27 de novembro de 2019

GUILHERME DE FARIA – Soneto da minha ânsia



GUILHERME DE FARIA
(Guimarães, Portugal, 1907 – 1929)
Poeta

***

Profundamente saudosista e arreigadamente monárquico integralista, o seu lirismo musical manteve-se na linha da poesia dos cancioneiros e da obra de alguns dos melhores poetas do classicismo.

in “Grande Livro dos Portugueses”

***

SONETO DA MINHA ÂNSIA

Subir! Subir! Subir! – Eis o ideal
Único desta vida de imperfeito!
Quero subir, meu Deus, tenho o direito
De subir! Que, em minha alma de Imortal,

Sinto, às vezes, dourada e triunfal,
Uma luz singular! E sou perfeito
Embora sinta o Mar dentro do peito!
Sou divino, supremo e desigual!

Então ulula o vento da loucura…
E a voz eterna e clara da Aventura
Chama por mim, gritando, sem cessar…

Subir! Subir! Subir! Hei-de subir!
Que, em minha alma, Senhor!, ’stou já a sentir
Uma sombra de génio a perpassar!



terça-feira, 26 de novembro de 2019

MÁRIO HENRIQUE LEIRIA - A invenção da água



                        MÁRIO HENRIQUE LEIRIA
(Lisboa, Portugal, 1923 — Cascais, 1980)
Escritor

***

A INVENÇÃO DA ÁGUA

Como muito bem se sabe, no princípio não havia água.
Só havia o verbo.
Depois apareceram o sujeito e o complemento directo.
Mas de água, nada.

Então todos começaram a beber vinho e deus achou que era bom.
E lá isso era!

No entanto, com o aparecimento das primeiras culturas
do tipo comercial, tornou-se evidente
a falta de qualquer coisa
que pudesse aumentar a produção do vinho
e torná-lo mais rentável.

Era a água, claro.

Mas não havia água, como já fizemos notar.
As primeiras pesquisas,
então ainda bastante primitivas,
levaram à descoberta da água-pé.

Embora curiosa, essa descoberta não resolveu,
de forma alguma, o fim pretendido.
Continuava a não haver água. As pesquisas prosseguiram.

Felizmente o homem é assim, nunca desiste.
É isso que faz o progresso.
E largos tempos passados chegou-se a nova descoberta:
a aguardente.

Era melhor, não duvidemos, mas realmente não era o desejado.
Faltava a água. Definitivamente.
As civilizações pastoris, no seu nomadismo constante,
descobriram, acidentalmente, a água-bórica que,
aliás, nunca serviu para nada. Coisas de nómadas.

Foi então que no seio das culturas orientais
mais avançadas tecnologicamente,
surgiu a grande invenção:
um misterioso pó branco que,
deitado em mínima quantidade num litro de água,
o convertia,
quase milagrosamente,
num litro de água.
ESTAVA INVENTADA A ÁGUA

Inicialmente rara e só usada para fazer vinho,
tornou-se no entanto com o desenvolvimento industrial,
bastante acessível e abundante.

Ergueram-se os primeiros lagos,
deu-se início aos rios pequeninos e,
finalmente surgiram os rios maiores,
aqueles muito grandes,
que consta várias pessoas já terem visto por aí.


Este progressivo desenvolvimento líquido
teve como consequência
o aparecimento de poderosas civilizações marítimas,
que se desenvolveram de tal maneira que nos puseram
no brilhante estado em que nos encontramos.

É o que fazem as invenções.

No entanto, e mesmo com a actual abundância,
não devemos abusar, dada a tremenda
explosão demográfica que se está registando.

Parece-nos mais prudente beber gin. Sempre.





segunda-feira, 25 de novembro de 2019

JOÃO XAVIER DE MATOS - Pôs-se o Sol



JOÃO XAVIER DE MATOS
(Lisboa, Portugal, 1730/5 - Vila de Frades, 1789)
Poeta

***

Poeta árcade, a sua poesia documenta a evolução setecentista, onde se cultiva o barroquismo gongórico, depois o racionalismo neoclássico e por fim o pré-romantismo. O melhor das suas produções poéticas encontra-se em Rimas, em três volumes.


in “Livro dos Portugueses”
***
PÔS-SE O SOL

Pôs-se o sol... Como já na sombra feia
Do dia pouco a pouco a luz desmaia,
E a parda mão da noite, antes que caia,
De grossas nuvens todo o ar semeia!

Apenas já diviso a minha aldeia;
Já do cipreste não distingo a faia.
Tudo em silêncio está; só lá na praia
Se ouvem quebrar as ondas pela areia.

Co’a mão na face, a vista ao céu levanto;
E cheio de mortal melancolia,
Nos tristes olhos mal sustenho o pranto.

E se inda algum alívio ter podia,
Era ver esta noite durar tanto
Que nunca mais amanhecesse o dia!


domingo, 24 de novembro de 2019

RAYMOND QUENEAU – Poema para a posteridade



                            RAYMOND QUENEAU 
                           (França, 1903 - 1976) 
                                Poeta, escritor

***

POEMA PARA A POSTERIDADE

Esta noite,
e se eu escrevesse um poema para a posteridade?
Droga!
Que grande ideia

Me sinto confiante
Lá vou eu!
E, para a posteridade, eu digo:
Merda! Merda de novo!
Merda 3 vezes!
Sem dúvida, enganei a posteridade,
que esperava seu poema.

Então, acabou


sábado, 23 de novembro de 2019

TOMÁS RIBEIRO – Velha Goa



TOMÁS RIBEIRO
(Tondela, Portugal, 1831 – Lisboa, 1901)
Escritor, poeta, político

***
VELHA GOA

Eis a cidade morta, a solitária Goa
seus templos alvejando num palmar enorme!
Eis o Mandovy-Tejo, a oriental Lisboa,
onde em jazigo régio imensa gloria dorme”

Jaz em tristeza imersa a tétrica cidade!
O turbilhão dourado, o estrondear da festa
envolve-os em seu corpor a mística saudade
e abisma-os no mistério a pávida floresta.   

Nós somos do passado a tímida memória
buscando os seus avós no palmeiral funéreo
que apenas sobredoura um ténue alvor de gloria
como de fátua luz se esmalta um cemitério.