terça-feira, 31 de dezembro de 2019

LUÍS DE CAMÕES - O tempo acaba o ano, o mês e a hora



LUÍS DE CAMÕES
(Lisboa, Portugal, 1524 - 1579/80)
Poeta

***

O TEMPO ACABA O ANO, O MÊS E A HORA

O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;

O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

FERNANDO PESSOA - Como Ser Livre



FERNANDO PESSOA
(Lisboa, Portugal, 1888 - 1935)
Poeta, ensaísta, tradutor
***

COMO SER LIVRE



Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo - quando o homem se ergue a este píncaro, está livre, como em todos os píncaros, está só, como em todos os píncaros, está unido ao céu, a que nunca está unido, como em todos os píncaros.




in "Teoria da Heteronímia"
Imagem: retrato de Fernando Pessoa - desenho de Almada Negreiros.
 



domingo, 29 de dezembro de 2019

FLORBELA ESPANCA – Os versos que te fiz



FLORBELA ESPANCA
(Vila Viçosa, Portugal, 1894 - Matosinhos, 1930)
Poetisa

***

OS VERSOS QUE TE FIZ

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!




sábado, 28 de dezembro de 2019

LUÍS MIGUEL NAVA - A pele é o espelho da memória




LUÍS MIGUEL NAVA
(Viseu, Portugal, 1957 - Bruxelas, Bélgica, 1995)
Poeta
***

A PELE É O ESPELHO DA MEMÓRIA


Os dedos com que me tocou
persistem sob a pele,
onde a memória os move.
Tacteiam, impolutos.
Tantas vezes o suor os traz consigo da memória,
que não tenho na pele poro através do qual
eles não procurem sair quando transpiro.
A pele é o espelho da memória.



sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO – Recordar é viver




MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
(Lisboa, Portugal, 1890 — Paris, França, 1916)
Poeta, contista
                                  
 ***

RECORDAR É VIVER
a Th. Cabreira Júnior


A Quinta das Violetas é uma encantadora propriedade situada numa ridente povoação, distante de Lisboa poucos quilómetros. Actualmente pertence a um médico, distinto alienista que a aproveita apenas para nela passar dois ou três meses, durante o verão.

Ora este ano, numa formosa manhã de Maio, o caseiro, sentindo
bater ao portão, foi abri-lo e deparou com uma senhora, idosa já, que lhe disse timidamente:

– «Se o senhor me deixasse entrar... Sabe, esta quinta já foi minha... Gostava tanto de a ver...»

O caseiro, como era natural, satisfez -lhe o pedido. A senhora idosa entrou.

Quarenta anos!... Sim, quarenta anos e no entanto parecia que ainda tinha sido ontem...

Que venturosos dias não havia passado ali, nesse «paraíso» onde agora entrava como uma estranha, ela, que já fora a dona de todas essas árvores, de todas essas pedras!... Que felizes tempos!... Era então uma linda rapariga de cabelos d’ouro a quem tudo sorria...

Uma atmosfera d’amor a rodeava... Amava tanto o seu marido... tanto... e – oh! suprema ventura! – era também amada por ele com o mesmo ardor!... À noite, ternamente enlaçados, percorriam as ruas orladas de buxo que a Lua, lá do alto, iluminava com a sua pálida luz... Oh! quantas vezes... quantas, debaixo do céu coberto de estrelas, se não haviam unido os seus lábios num longo e ardente
beijo, cujo ruído o murmúrio das folhas sacudidas pela brisa abafava discretamente...

Quarenta anos, sim, quarenta anos e no entanto parecia que ainda tinha sido ontem!...

... Entrou. No pátio em que se encontrava, os seus pés pousavam sobre os mesmos ladrilhos d’outrora e os seus olhos sobre as mesmas paredes, sobre a mesma floreira de ferro, pintada com o mesmo verde. Só os vasos e as plantas é que haviam mudado... Saiu do pátio. Tomou uma rua... aqui, uma árvore a menos, ali um muro caiado de fresco... uma cancela nova... Nada mais e haviam decorrido tantos anos... tantos...

Chegou ao fim da rua, onde existia uma mesa de pedra, rodeada por um assento também de pedra... As doze badaladas do meio -dia ressoavam lá ao longe, tangidas pelo pequeno sino da freguesia... E o som desse sino era também o mesmo... o mesmo d’outrora...

O filho do caseiro veio chamar o seu pai para ir jantar. A senhora idosa ficou só...

Ali... sim, fora ali, sentada naquele mesmo banco que, num dia lindo de Maio, num dia em que o sol brilhava, radioso, iluminando um céu azul d’anil, sem uma nuvem, que ouvira as primeiras palavras de amor, que trocara o seu primeiro beijo...

As lágrimas começaram escorregando pelas suas faces, vagarosamente... É que toda a sua vida – monstruosa fita cinematográfica ora alegre, ora triste – ia passando por diante dos seus pobres olhos apagados: primeiro a felicidade, depois a desgraça... a ruína de seu marido, a sua partida para África... a sua morte... toda uma existência, enfim, da qual nada restava... nada, a não ser, lá longe, debaixo das areias ardentes dum deserto africano, um feixe de ossos calcinados e ali, ali, à sombra dum cedro centenário, um outro feixe d’ossos coberto porém com um invólucro de pele diáfana e ressequida...

As lágrimas eram cada vez mais amargas... mais abundantes... O sol, o lindo sol de Maio, brilhava lá em cima, radioso, iluminando
um céu d’anil, sem uma nuvem... sem uma única nuvem...




in “Primeiros Contos”







quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

GEORGE ORWEL - Escrever um Livro é uma Luta Horrível



GEORGE ORWEL
(Índia Britânica, 1903 - Reino Unido 1950)
Escritor

***

Tornou-se célebre pelas suas obras de ficção política, mas foi também um ensaísta tão genial quanto prolífico. Escritor compulsivo, Orwell lançava sobre a actualidade social e política do seu tempo um olhar implacável, tendo sempre como trave-mestra da sua cosmovisão a denúncia do totalitarismo, sob todas as formas.

in “Antígona”

***

ESCREVER UM LIVRO É UMA LUTA HORRÍVEL


Todos os escritores são vaidosos, egoístas e preguiçosos, e no fundo das suas motivações reside um mistério. Escrever um livro é uma luta horrível e extenuante, como uma longa crise de uma doença dolorosa. 

Nunca nos entregaríamos a tal coisa se não fôssemos conduzidos por um qualquer demónio ao qual não podemos resistir nem sequer compreender. Tanto quanto sabemos, tal demónio é simplesmente o mesmo instinto que faz um bebé berrar para chamar a atenção. E contudo é também verdade que nada de legível se consegue escrever, a menos que lutemos constantemente para apagar a nossa própria personalidade. 
A boa prosa é como uma vidraça.



in “Porque Escrevo e Outras Histórias” (citador)

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

VINICIUS DE MORAES - O PERU



VINICIUS DE MORAES
(Rio de Janeiro, Brasil, 1913 - 1980)
Poeta


***

 


O PERU


O PERU


Glu! Glu! Glu!
Abram alas pro peru!

O peru foi a passeio
Pensando que era pavão
Tico-tico riu-se tanto
Que morreu de congestão.

O peru dança de roda
Numa roda de carvão
Quando acaba fica tonto
De quase cair no chão.

O peru se viu um dia
Nas águas do ribeirão
Foi-se olhando foi dizendo
Que beleza de pavão!

Glu! Glu! Glu!
Abram alas pro peru!

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

ANTÓNIO ALEIXO - Não creio nesse Deus



ANTÓNIO ALEIXO

(Vila Real de Santo António, Portugal, 1899 - Loulé, 1949)

Poeta

***

Quase analfabeto, foi tecelão, servente de pedreiro em França, pastor de cabras e cauteleiro. O exercício desta profissão levou-o de terra em terra, favorecendo-lhe o cultivo da sua veia poética. Os seus versos de tom dolorido reflectem bem a vida amarga que lhe coube em sorte.


in “Livro dos Portugueses”

***

NÃO CREIO NESSE DEUS


I

Não sei se és parvo se és inteligente
— Ao disfrutares vida de nababo
Louvando um Deus, do qual te dizes crente,
Que te livre das garras do diabo
E te faça feliz eternamente.

II

Não vês que o teu bem-estar faz d'outra gente
A dor, o sofrimento, a fome e a guerra?
E tu não queres p'ra ti o céu e a terra…
— Não te achas egoísta ou exigente?

III

Não creio nesse Deus que, na igreja,
Escuta, dos beatos, confissões;
Não posso crer num Deus que se maneja,
Em troca de promessas e orações,
P'ra o homem conseguir o que deseja.

IV

Se Deus quer que vivamos irmãmente,
Quem cumpre esse dever por que receia
As iras do divino padre eterno?...
P'ra esses é o céu; porque o inferno
É p'ra quem vive a vida à custa alheia!





segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

ARMINDO RODRIGUES - Elegia por antecipação à minha morte tranquila



ARMINDO RODRIGUES
(Lisboa, Portugal, 1904 – 1993)
Poeta, tradutor

***
Poeta ligado ao movimento neo-realista português.

***
ELEGIA POR ANTECIPAÇÃO À MINHA MORTE TRANQUILA
 
Vem, morte, quando vieres.
     Onde as leis são vis, ou tontas,
    não és tu que me amedrontas.
Troquei por penas prazeres.
     Troquei por confiança afrontas.
        Tenho sempre as contas prontas.
    Vem, morte, quando quiseres.






domingo, 22 de dezembro de 2019

ADÉLIA PRADO – Amor feinho



ADÉLIA PRADO
(Divinópolis, Brasil, 1935)
Poetisa, professora, filósofa
                                   
***
AMOR FEINHO

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero um amor feinho.




sábado, 21 de dezembro de 2019

GIL VICENTE - Barcarola dos três anjos no Auto da Barca do Purgatório



GIL VICENTE
(Guimarães, Portugal, 1465 – Évora, 1536)
Dramaturgo, poeta

***

BARCAROLA DOS TRÊS ANJOS NO AUTO DA BARCA DO PURGATÓRIO
                         
                         Remando vão remadores
                         Barca de grande alegria;
                         O patrão que a guiava,
                         Filho de Deus se dizia.
                         Anjos eram os remeiros,
                         Que remavam à porfia;
                         Estandarte de esperança,
                         Oh quão bem que parecia!
                         O mastro da fortaleza
                         Como cristal reluzia;
                         A vela com fé cosida
                         Todo o mundo esclarecia;
                         A ribeira mui serena,
                         Que nenhum vento bulia.