quinta-feira, 10 de outubro de 2013

A POESIA E AS GUERRAS – (II)

 


 
      Explico algumas coisas              

Perguntam-me: onde estão os lírios?
E a metafísica coberta de papoulas?
E a chuva que frequentemente batia
nas suas palavras enchendo-as
de buracos e pássaros?

Vou contar tudo o que se passa comigo

Eu vivia num bairro de Madrid
com sinos,
com relógios, com árvores.
Dali se via
o rosto seco de Castela
como um oceano de couro.

Minha casa era chamada
a casa das flores, porque por todas as partes
brotavam gerânios:
era uma bela casa
com cães e crianças.

Raul lembras-te?
Lembras-te Rafael?
Federico, lembras-te
debaixo da terra,
lembram da minha casa com sacadas

onde a luz de junho afogava flores na tua boca?
Irmão, irmão!

Tudo
eram grandes vozes, o sal de mercadorias,
aglomerações de pão palpitante,
mercados do meu bairro de Arguelles com a sua estátua
como um tinteiro pálido entre as bebedeiras.
O azeite enchia as colheres,
um profundo bater
de pés e mãos enchia as ruas,
metros, litros, essência
aguda da vida,
peixes empilhados, contextura de tetos com sol frio no qual
a flecha se cansa,
delirante marfim fino de batatas,
tomates repetidos até o mar.

E numa manhã tudo estava ardendo
e numa manhã as fogueiras
saíam da terra
devorando seres,
e desde então fogo,
pólvora desde então,
e desde então sangue.
Bandidos com aviões e com mouros
bandidos com anéis e duquesas,
bandidos com frades negros abençoando
vinham pelo céu para matar crianças,
e pelas ruas o sangue das crianças
corria simplesmente, como sangue de crianças.

Chacais que o chacal rechaçaria,
pedras que o cardo seco morderia cuspindo,
víboras  que as víboras odiariam!

Diante de vós vi o sangue
de Espanha se levantar
para vos afogar numa só onda
de orgulho e de punhais!

Generais traidores:
olhai a minha casa morta,
olhai a Espanha arrebentada,
mas de cada casa morta sai metal ardendo
em vez de flores,
mas de cada buraco de Espanha
sai Espanha,
mas de cada criança morta sai um fuzil com olhos,
mas de cada crime nascem balas
que vos encontrarão um dia o lugar
do coração.

Perguntareis por que a sua poesia
não nos fala do sonhos, das folhas,
das grandes montanhas de sua terra natal?

Vinde ver o sangue pelas ruas!
Vinde ver o sangue de Espanha!

Vinde ver o sangue pelas ruas!

 Pablo Neruda   

 Notas:

- A ilustração reproduz o painel que Pablo Picasso pintou, em 1937, denominado “Guernica”. Retrata a visão do bombardeamento por aviões alemães sobre a cidade basca Guernica, em Espanha, apoiando o ditador Francisco Franco.

- Pablo Neruda morava em Madrid, na Casa das Flores, quando explodiram os bombardeios sobre a cidade.

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