quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS

 
 
 

Camões dirige-se aos seus contemporâneos
 
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
Para passar por meu. E para os outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
 
 
Jorge de Sena, in “Metamorfoses”
Ilustração: “Reflections of a Starving Man or a Social  Contrasts”, do pintor italiano Emílio Longoni. (1859-1932)
 

 

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