domingo, 31 de agosto de 2014

SOBRE O GAFANHOTO E O GRILO

 
 
 
 
 
 
 

Sobre o Gafanhoto e o Grilo

 

A poesia da terra jamais cessa:
Quando todos os pássaros languescem ao sol ardente,
E se escondem nas frescas árvores, uma voz corre
De cerca em cerca ao redor do prado recém-ceifado;
É o Gafanhoto - ele rege
A luxúria do verão, - nunca finda
Suas delícias; pois, quando exaurido em alegria,
Repousa sob alguma boa erva daninha.
A poesia da terra jamais cessa.
Numa solitária noite de inverno, quando a geada
Traz o silêncio, do fogareiro sibila
O canto do Grilo, sempre mais quente,
E semelha alguém perdido na sonolência,
O do Gafanhoto entre as verdejantes colinas. 

 
 
John Keats (1795-1821), poeta inglês.

 

 

 

 

sábado, 30 de agosto de 2014

PERDI OS MEUS FANTÁSTICOS CASTELOS

 
 
 
 
 
 
 

Perdi os Meus Fantásticos Castelos

 
 
Perdi meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma...
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:

Quebrei as minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma...
- Tantos escolhos! Quem podia vê-los? –
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!


Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de ouro e pedrarias...


Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...
Sobre o meu coração pesam montanhas...
Olho assombrada as minhas mãos vazias...

 

Florbela Espanca, in "A Mensageira das Violetas".

 

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

EÇA DE QUEIROZ

 
 
 
 
 

Eça de Queiroz (1845-1900) nasceu na Póvoa de Varzim, Portugal.

Romancista, contista, diplomata, advogado e tradutor é considerado como um dos principais representantes do realismo português.

Em 1909, publicou Prosas Bárbaras, um conjunto de dez folhetins divulgados no jornal “Gazeta de Portugal”.

Foi membro proeminente do “Cenáculo”. Participou nas “Conferências Democráticas do Casino Lisbonense”, proferindo a quarta conferência intitulada “A Nova Literatura ou o Realismo como Expressão de Arte”.

Foi autor das célebres obras: O Primo Basílio, O Conde de Abranhos, A Catástrofe, O Crime do Padre Amaro, O Mandarim, O Mistério da Estrada de Sintra, A Relíquia, Os Maias, A Ilustre Casa de Ramires, A Cidade e as Serras, A Tragédia da Rua das Flores..

               

 
Palavras de Eça de Queirós:

"As duas qualidades mais preciosas em Arte, que mais raramente se reúnem: Realidade e Poesia."


 
 
Coração Incoerente

A superior sapiência das nações já formulou esta lei naquele seu fino adágio: O coração não sente o que os olhos não vêem. A mais pequenina dor que diante de nós se produz e diante de nós geme, põe na nossa alma uma comiseração e na nossa carne um arrepio, que lhe não dariam as mais pavorosas catástrofes passadas longe, noutro tempo ou sob outros céus.

Um homem caído a um poço na minha rua mais ansiadamente me sobressalta que cem mineiros sepultados numa mina da Sibéria: - e um carro esmagando a pata de um cão, em frente à nossa janela, é um caso infinitamente mais aflitivo do que a heróica e admirável Joana d'Arc queimada na praça de Rouen.

 

Eça de Queirós, in “Distrito de Évora”.

 

 

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

LÁGRIMAS NA CADEIRA DO DENTISTA

 
 
 
 
 

 
Lágrimas na cadeira do dentista

Não, não é o dente que dói.
Não, o motor não incomoda.

Não me doem os dentes
mas quem morde.

Nunca o que dói é o aparente
senão o outro, de outra ordem
o oculto na cárie da vida, o tártaro
dos ossos,
na intempérie incisiva da dentadura mole.

Nunca o que dói, doutor,
é o que fazem as máquinas,
senão
o humano dessas brocas
os buracos
da alma.

Ponha ouro, doutor,
e seja lá o que possa
morder o dente, ávido de amor,
a conta, ao fim, é nossa.

 

Renata Pallottini, poetisa brasileira.


quarta-feira, 27 de agosto de 2014

DAS PESSOAS QUE ATINGEM POSIÇÕES ELEVADAS

 
 
 
 
 
 

Das Pessoas que Atingem Posições Elevadas

 
 
Das pessoas que atingem posições elevadas,
cerimónias, riqueza, erudição, e similares:
para mim tudo isso a que chegam tais pessoas
afunda diante delas — a não ser quando acrescenta
um resultado qualquer para seus corpos e almas —

de modo que elas muitas vezes me parecem
desajeitadas e nuas, e para mim
uma está sempre zombando das outras
e a zombar dele mesmo ou dela mesma,
e o cerne da vida de cada qual
(a que se dá o nome de felicidade)

está cheio de pútrido excremento de larvas,
e para mim muitas vezes esses homens e mulheres
passam sem testemunhar as verdades da vida
e andam correndo atrás de coisas falsas,
e para mim são muitas vezes pessoas
que pautam as suas vidas por um hábito
que a elas foi imposto, e nada mais,
e para mim é gente triste muitas vezes,
gente afobada, estremunhados sonâmbulos
tacteando no escuro.

 

Walt Whitman, in "Leaves of Grass"

Imagem: tela do pintor brasileiro Oswaldo Goldi (1920-1961).

 


terça-feira, 26 de agosto de 2014

DEIXAI OS DOIDOS GOVERNAR ENTRE COMPARSAS

 
 
 
 
 
 

 
 
Deixai os doidos governar entre comparsas

 

 

 

Deixai os doidos governar entre comparsas!
Deixai-os declamar dos seus balcões
Sobre as praças desertas!
Deixai as frases odiosas que eles disserem,
Como morcegos à luz do Sol,
Atónitas baterem de parede em parede,
Até morrerem no ar
Que as não ouviu
Nem percutiu
À distância da multidão que partiu!
Deixai-os gritar pelos salões vazios,
Eles, os portentosos mais que os mares,
Eles, os caudalosos mais que os rios,
O medo de estar sós
Entre os milhares
De esgares
Reflectidos dos colossais
Cristais
Hílares
Que a sua grandeza lhes sonhou!
 

 

 
Reinaldo Ferreira, poeta português, in “Poemas”.

 
Imagem: quadro pintado no manicómio de Bethlem, em Inglaterra, por Richard Dadd, que passou 42 anos encerrado em diversos centros de reclusão para doentes mentais.

 

 

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

ODE PARA O FUTURO

 
 
 

 
 
          Ode para o Futuro

 
 
Falareis de nós como de um sonho.
Crepúsculo dourado. Frases calmas.
Gestos vagarosos. Música suave.
Pensamento arguto. Subtis sorrisos.
Paisagens deslizando na distância.
Éramos livres. Falávamos, sabíamos,
e amávamos serena e docemente.

Uma angústia delida, melancólica,
sobre ela sonhareis.

E as tempestades, as desordens, gritos,
violência, escárnio, confusão odienta,
primaveras morrendo ignoradas
nas encostas vizinhas, as prisões,
as mortes, o amor vendido,
as lágrimas e as lutas,
o desespero da vida que nos roubam
- apenas uma angústia melancólica,
sobre a qual sonhareis a idade de oiro.

E, em segredo, saudosos, enlevados,
falareis de nós - de nós! - como de um sonho.

 
Jorge de Sena, in “Pedra Filosofal”
Imagem: Pintura de Eugène Delacroix (1798-1863).

 

domingo, 24 de agosto de 2014

TEIXEIRA DE PASCOAES

 
 
 
 

Teixeira de Pascoaes (1877-1952) nasceu em Amarante, Portugal.

Poeta, escritor, ensaísta, advogado, foi um dos iniciadores do movimento poético-filosófico denominado Saudosismo.

Foi director da revista “A Águia”, que se tornou órgão do movimento da “Renascença Portuguesa”.

Algumas das suas obras: Embriões, Vida Etérea, As Sombras,  Cantos Indecisos, A Arte de Ser Português, Dois Jornalistas.

Escreveu, também, as biografias romanceadas de São Paulo, São Jerónimo, Santo Agostinho e Napoleão.

Em 1828, publicou a autobiografia Livro de Memórias.

Teixeira de Pascoaes foi o poeta maior da “Renascença Portuguesa”.

Fernando Pessoa escreveu sobre Teixeira de Pascoaes:
A Saudade é para ele uma “religião” pátria, de origem ao mesmo tempo pagã e cristã, que projectou poeticamente em um “panteísmo transcendentalista.”
 

Palavras de Teixeira de Pascoaes:
"Sim, a Palavra é uma Criatura; tem, portanto, a sua anatomia e a sua psicologia, dignas do amor, do respeito e carinho que merece tudo o que vive."
 
                 
                Delírio

 

Não posso crer na morte do Menino!
E julgo ouvi-lo e vê-lo, a cada passo...
É ele? Não. Sou eu que desatino;
É a minha dor sofrida, o meu cansaço.

Delírio que me prendes num abraço,
Emendarás a obra do Destino?
Vê-lo-ei sorrir, de novo, no regaço
Da mãe? Verei seu rosto pequenino?

Mistério! Sombra imensa! Alto segredo!
Jamais! Jamais! Quem sabe? Tenho medo!
Que vejo em mim? A treva? A luz futura?

Ah, que a dor infinita de o perder
Seja a alegria de o tornar a ver,
Meu Deus, embora noutra criatura!

Teixeira de Pascoaes

sábado, 23 de agosto de 2014

PAVANA PARA UMA BURGUESA DEFUNTA

 
 
 
 

 
Pavana para uma Burguesa Defunta

 

A cabeça de vaca de minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha.
Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor.

Repousa em paz. Raposa que na toca
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira
já não vive mas ousa
ser a santa que foi ser o estrume que é.

A cabeça de vaca de minha tia refoga
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viuvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustrada.

A cabeça de vaca de minha tia meneia
o sim-sim o não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exalação dos suspiros cativos.

Se não fosse o desgosto se não fosse a gordura
o retrato na sala o buraco no ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.

Minha tia mastiga minha tia castiga
na saleta do inferno as almas dos criados:
- não me limpaste o pó a campa tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.

A cabeça de vaca de minha tia sem nome
coze no fogo brando do que é passar à história.
Dissolve-se na boca resolve-se na fome
do senhor que a devora em sua santa glória.

 

 

Ary dos Santos, in “Obra Poética”

 

 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

POSTO DE OBSERVAÇÃO

 
 
 
 
 

         Posto de observação

 
Pelos meus olhos perpassam as colinas,
a floresta pariu a rubra lua-guarda.
Uma metralhadora patinha por detrás das estrelas.
Eu sou uma hora no silêncio.
Dos túmulos
saiu tacteando a manhã.
Um amen
goteja nos meus pensamentos.

 

 
Kurt Heynicke, poeta alemão (1891-1985)
Imagem: “O Triunfo da Morte”, do pintor flamengo Pieter Brueghel, “O Velho”.
 
Este poema foi escrito em 1917, quando a primeira guerra mundial estava a chegar ao fim.

 


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

SENHORA, PARTEM TÃO TRISTES

 
 
 
 
 
 

 

 Senhora, partem tão tristes

 

Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.


Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.


Partem tão tristes os tristes,
tão fora de esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

 

 
João Roiz de Castel- Branco, poeta palaciano português do século XV.

Imagem: pintura de Leonardo da Vinci.

 

 

 

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

ELA

 
 
 
 
 
 
 

                          Ela

 

Ela pode ser o rosto que eu não consigo esquecer
Um traço de prazer ou de arrependimento
Talvez meu tesouro ou
O preço que eu tenho que pagar.

Ela pode ser a música que o verão canta
Talvez o frescor que o outono traz
Talvez uma centena de coisas diferentes
No espaço de um dia.

Ela pode ser a bela ou a fera
Talvez fome ou a fartura
Pode transformar cada dia em um paraíso
Ou em um inferno.

Ela pode ser o espelho do meu sonho
O sorriso refletido no rio
Ela pode não ser o que parece ser
Dentro de sua concha.

Ela, que sempre parece tão feliz no meio da multidão
Com os olhos tão pessoais e tão orgulhosos
Mas que não podem ser vistos
Quando choram.

Pode ser o amor que não espera que dure
Pode vir das sombras do passado
Que eu irei me lembrar até o dia de minha morte.

Ela talvez seja o motivo para eu sobreviver
A razão pela qual eu estou vivo
A pessoa que cuidarei através
Dos difíceis e imediatos anos.

Eu, eu pegarei as risadas e as lágrimas dela
E farei delas todas minhas recordações
Para onde ela for, eu tenho que estar lá
O sentido da minha vida é ela.

 

 
Charles Aznavour, cantor e compositor francês de origem arménia.
Ilustração: pintura de Meifang Wang (Pequim, China, 1949)

 

 


terça-feira, 19 de agosto de 2014

POEMA DA NECESSIDADE

 
 
 
 
 
 

Poema da Necessidade

É preciso casar João,
é preciso suportar António,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.

 

Carlos Drummond de Andrade, in “Sentimento do Mundo”

 

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

ISAAC BASHEVIS SINGER

 
 
 
 
Isaac Bashevis Singer (1902-1991) nasceu em Radzymin, Polónia.

 
Foi romancista, jornalista, contista e tradutor judeu-americano.
Passou muitos anos nos Estados Unidos, onde publicou as suas obras. Foi autor de vários livros infantis.
Embora escrevesse em iídiche (língua de origem judaica ashkenazi), ele supervisionava a tradução para inglês.
Os seus romances revelam verdades espirituais e magia para além da vida de todos os dias.
Nos últimos trinta e cinco anos de vida, Isaac Singer converteu-se ao vegetarianismo, sobretudo por compaixão pelos animais.
 
Recebeu, em 1978, o “Prémio Nobel de Literatura”.
 
 
Palavras de Isaac Bashevis Singer:
“Não haverá justiça enquanto o homem empunhar uma faca ou uma arma e destruir aqueles que são mais fracos que ele.”
 
 
Discurso de Isaac Singer ao receber o Prémio Nobel:
 
 
“Vossas Majestades, Vossa Alteza Real, Senhoras e Senhores,
As pessoas perguntam-me com frequência: “Porque é que você escreve numa língua moribunda?” Quero explicá-lo em poucas palavras.
Primeiro, gosto de escrever estórias de fantasmas e nada se encaixa melhor num fantasma do que uma língua morta. Quanto mais morta é a língua, mais vivo é o fantasma. Fantasmas amam o iídiche e, até onde eu saiba, todos o dominam.
Em segundo lugar, não creio apenas em fantasmas como também creio na ressurreição. Estou certo de que, quando o Messias regressar, milhões de cadáveres fluentes em iídiche se levantarão de seus túmulos e a primeira pergunta que farão será: “Há algum novo livro em iídiche para ler?” Para eles, o iídiche não será uma língua morta.
Terceiro: em 2000 anos o hebraico foi considerado uma língua morta. Subitamente ela se tornou estranhamente viva. O que aconteceu ao hebraico pode também ocorrer, um dia, ao iídiche. (embora eu não tenha a mínima ideia de como isso poderia passar-se).
Há ainda uma quarta razão secundária para não renunciar ao iídiche que é esta: o iídiche pode ser uma língua moribunda, mas é a única que eu conheço bem. O iídiche é minha língua materna e uma mãe nunca está realmente morta.
Senhoras e senhores: há quinhentas razões pelas quais eu comecei a escrever para crianças, mas para economizar tempo irei mencionar somente dez delas:
Número 1) Crianças lêem livros e não resenhas. Elas não dão a mínima para os críticos.
Número 2) Crianças não lêem para encontrar a sua identidade.
Número 3) Elas não lêem para se ver livres de culpa, para saciar sua sede de rebelião, ou para se desembaraçar da alienação.
Número 4) Elas não vêem utilidade na psicologia.
Número 5) Elas detestam sociologia.
Número 6) Elas não tentam entender Kafka ou o Finnegans Wake.
Número 7) Elas ainda crêem em Deus, na família, anjos, demónios, bruxas, gnomos, lógica, claridade, pontuação, e outras coisas obsoletas.
Número 8) Elas amam histórias interessantes, não lêm comentários, guias ou notas de rodapé.
Número 9) Quando um livro é chato, elas bocejam descaradamente, sem qualquer vergonha ou medo da autoridade.
Número 10) Elas não esperam que seu bem-amado escritor redima a humanidade. Jovens como são, elas sabem que isto não está sob o poder dele. Apenas adultos possuem tais ilusões infantis.”
 
Isaac Bashevis Singer