domingo, 12 de abril de 2015

CARTA do Poeta Álvaro de Campos ao Director da Revista Literária “Contemporânea”

 
 
 
 
 
 
Extractos da carta dirigida a José Pacheco, director da revista literária “Contemporânea”, pelo poeta Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa):
 
Meu querido José Pacheco:
Venho escrever-lhe para o felicitar pela sua “Contemporânea” para lhe dizer que não tenho escrito nada e para pôr alguns embargos ao artigo do Fernando Pessoa.
Quereria mandar-lhe também colaboração. Mas, como lhe disse, não escrevo. Fui em tempos poeta decadente; hoje creio que estou decadente, e já o não sou.
 (…) Agora o artigo do Fernando. Com o intervalo entre a primeira palavra desta carta e a primeira palavra deste parágrafo, já quase me não lembra o que é que lhe queria dizer do artigo. Talvez pensasse em dizer exactamente o que vou escrever a seguir. Enfim, prometi, e digo o que sinto agora, e segundo os nervos deste momento.
Continua o Fernando Pessoa com aquela mania, que tantas vezes lhe censurei, de julgar que as coisas se provam. Nada se prova senão para ter a hipocrisia de não afirmar. O raciocínio é uma timidez — duas timidezes talvez, sendo a segunda a de ter vergonha de estar calado.
Ideal estético, meu querido José Pacheco, ideal estético! Onde foi essa frase buscar sentido? E o que encontrou lá quando o descobriu?
(…) Estética, José Pacheco? Não há beleza, como não há moral, como não há fórmulas senão para definir compostos. Na tragédia físico-química a que se chama a Vida, essas coisas são como chamas — simples sinais de combustão.
(…) O resto é o mito das Danaides, ou outro qualquer mito — porque todo o mito é o das Danaides, e todo o pensamento (diga-o ao Fernando) enche eternamente um tonel eternamente vazio.
(…) Relembro saudosamente — aqui do Norte improfícuo — os nossos tempos do «Orpheu», a antiga camaradagem, tudo em Lisboa de que eu gostava, e tudo em Lisboa de que eu não gostava — tudo com a mesma saudade.
Saúdo-o em Distância Constelada. Esta carta leva-lhe a minha afeição pela sua revista; não lhe leva a minha amizade por si porque V. já há muito tempo aí a tem.
Diga ao Fernando Pessoa que não tenha razão.
Um abraço do camarada amigo
 
Álvaro de Campos
 
Carta enviada à revista “Contemporânea”- Arquivos da “Casa Fernando Pessoa”.
Imagem: Álvaro de Campos visto por Almada Negreiros
 

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