sábado, 25 de abril de 2015

NATÁLIA CORREIA - Cântico do País Emerso

 
 
 
 
 

Natália Correia (Fajã de Baixo, São Miguel, Açores, Portugal, 1923 – Lisboa, Portugal, 1993).

A linguagem viva e a versatilidade dos géneros caracterizam-lhe a obra, que engloba teatro, romance, poesia e ensaio.

Foi uma mulher notável, multifacetada, provocante, apaixonada da liberdade, que marcou uma época nas letras e na política.
Recusou, ao longo da sua vida, as sucessivas arrumações da sua obra em géneros literários.
 
 
Palavras de Natália Correia:
“O espírito manifesta-se de diversas formas divinas, que são os deuses. É isso o politeísmo! O politeísmo é a própria demonstração de que a unidade está no espírito e que os deuses são facetas dessa unidade. Eu sou uma espiritualista!”
 
                 Cântico do País Emerso
 
Os previdentes e os presidentes tomam de ponta
Os inocentes que têm pressa de voar
Os revoltados fazem de conta fazem de conta...
Os revoltantes fazem as contas de somar.
 
 
Embebo-me na solidão como uma esponja
Por becos que me conduzem a hospitais.
O medo é um tenente que faz a ronda
E a ronda abre sepulcros fecha portais;
 
 
Os edifícios são malefícios da conjura
Municipal de um desalento e de uma Porta.
Salvo a ranhura para sair o funeral
Não há inquilinos nos edifícios vistos por fora
 
 
Que é dos meninos com cataventos na aérea
Arquitetura de gargalhadas em cornucópia?
Almas bovinas acomodadas à matéria
Pastam na erva entre as ruínas da memória,
 
 
Homens por dentro abandalhados em unhas sujas
Que desleixaram seu coração num bengaleiro;
Mulheres corujas seriam gregas não fossem as negras
Nódoas deixadas na sua carne pelo dinheiro;
 
 
Jovens alheios à pulcritude do corpo em festa
Passam por mim como alamedas de ciprestes
E a flor de cinza da juventude é uma aresta
Que me golpeia abrindo vácuos de flores silvestres
 
 
E essa ansiedade de mim mesma me virgula
Paula de pátria entressonhada. É um crisol.
E, o fruto agreste da linfa ardente que em mim circula
Sabe-me a sol. Sabe-me a pássaro. Pássaro ao sol.
 
 
Entre mim e a cidade se ateia a perspectiva
De uma angústia florida em narinas frementes. 
Apalpo-me estou viva e o tacto subjectiva-me
a galope num sonho com espuma nos dentes.
 
 
E invoco-vos, irmãos, Capitães-Mores do Instinto!
Que me acenais do mar com um lenço cor da aurora
E com a tinta azulada desse aceno me pinto.
O cais é a urgência. O embarque é agora.
 
Natália Correia

 
 
 

 

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