segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

JEAN-CLAUDE CARRIÈRE - A harpa sem cordas

 
 
 
 
 
 
 
A harpa sem cordas

 
 
Na tradição sufi, muitas vezes subtil e até secreta, conta-se a história de um eremita com grande reputação e de poderes incomparáveis que vivia retirado num deserto.

 
Um dia, em que estava imóvel como todos os dias no mesmo lugar, viu aparecer no horizonte uma espécie de bola de pó. A bola engrossou, engrossou e o eremita em breve percebeu que um homem se aproximava dele correndo, e era o que levantava a poeira.

 
O homem, que era jovem, chegou ao pé do eremita e prosternou-se diante dele. O eremita levantou-o. Deixou-o recobrar o fôlego e perguntou-lhe:

 
- Que queres tu?

- Mestre – respondeu-lhe o jovem – vim para ouvir-te tocar a harpa sem cordas.

 
- À vontade – disse o eremita.

 
O santo homem não mudou de todo a posição. Não pegou em nenhum instrumento, não fez nada. O eremita e o fervoroso discípulo ficaram imóveis em frente um do outro durante «um certo tempo» e este certo tempo, conforme a disposição ou a formação dos contadores, durou umas horas, uns dias ou uns anos. Aliás, não tem importância.

 
Passado esse «certo tempo», o jovem deu a entender, talvez por um gesto, por uma vénia, por um tossicar, um princípio de fadiga.

- Que tens? – perguntou-lhe o eremita.

O jovem mostrou alguma hesitação ao responder. Gaguejou. Não se percebia bem o que queria dizer. Para o auxiliar, o eremita perguntou, inclinando-se para ele:

- Não ouviste nada?

- Não – respondeu o jovem com voz culposa.

- Então – perguntou-lhe o eremita – porque não me pediste que tocasse mais forte?

 
Jean-Claude Carrière, in “Tertúlia de Mentirosos”

 


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