domingo, 11 de dezembro de 2016

O CARTEIRO





O CARTEIRO


Terminava o seu trabalho quase sempre por volta das cinco e meia da tarde.

Ao regressar a casa, comprava qualquer coisa para comer e, no quarto independente, alugado há seis anos a uma velhota, numa rua da Graça, preparava, às escondidas dela, a magra refeição que adquirira. Comia rapidamente, depois fechava as persianas e, vestido ainda com a farda de trabalho, deitava-se em cima da cama e adormecia profundamente.

Há trinta anos que a sua vida era aquela. Quando se instalou em Lisboa após ter entrado para os Correios onde era carteiro, sempre pensara que, um dia, casaria e teria filhos. Mas isso não acontecera e, de quarto alugado em quarto alugado, assim fora vivendo. 

Morreram-lhe os pais e ficara sem família. Os amigos nunca tinham sido muitos e, com o passar da idade, tinham praticamente desaparecido. Mas não se sentia infeliz.

Acordou, como sempre, por volta das quatro da manhã. Levantou-se e despiu a farda. Como pôde, lavou-se na bacia que a dona da casa lhe consentia ter no quarto. Depois, de dentro de uma mala, tirou uma camisa branca e umas calças cinzentas que vestiu. Em seguida, com extrema minúcia fez o nó de uma gravata azul-celeste, a única que possuía e vestiu o casaco do fato.

Mudara completamente de aspecto. Toda a gente, ao vê-lo, diria tratar-se de um respeitável chefe de família, de um aprumado funcionário público, de um abastado comerciante, de um professor do liceu ou até de um janota já um pouco entradote.

E foi com todas essas qualidades que se sentou à mesa, tirou da sacola de carteiro um grande maço de cartas que não expedira, abriu uma a seguir à outra e começou a responder-lhes.



in “Pão com manteiga” – livro de humor editado em 1980.
Imagem: pintura de Van Gogh (Holanda, 1853 – França,1890).



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