sábado, 7 de janeiro de 2017

A PROSÁPIA





A PROSÁPIA


É verdadeiramente o que se pode chamar - a fruta do tempo.

Não está sujeita à cronologia.
A seiva anima esta planta em qualquer das quatro estações do ano, e assim, floresce sempre, dá fruto sempre, e, como erva ruim, nem é estiolada pelas geadas do inverno, nem crestada pelas ardências do sol de verão.
Por isso lhe chamamos a fruta do tempo, à falta de melhor símbolo.

A Prosápia anda ali a flanar na loja do F...
Passou agora mesmo naquela praça...
Está ali dentro do grémio...
E na casa do...

Todos os dias dá os seus passeios, à tarde, e vem depois dar fundo na farmácia do largo da...
Vai aos bailes.. . Vai aos teatros… É fruto que até se deita e não está bem averiguado se ressona.
Sabe-se que sonha; e sobretudo que ronca.

Dá saltos como qualquer bola de borracha; cambalhotas como qualquer gafanhoto, e, sempre com a mesma disposição de alegria e jactância (qualidades estranhas em frutos…) ela procura impor-se a si mesmo, o que afinal equivale dizer que procura impor-se aos outros.

Toda a gente é ministro!
Toda a gente é magistrado!
Toda a gente é médico!
Toda a gente é engenheiro!
Toda a gente é jornalista!
Toda a gente é um músico!
Toda a gente é um doutor!

A Prosápia censura tudo; prevê o imprevisto; conhece o desconhecido; pondera o imponderável, estigmatizando o que os outros fazem e não o faz melhor.

A Prosápia!

É pior este fruto do que a maçã-de-adão.
Nesse ainda houve um não sei quê de bom.
Na Prosápia não há nada que se aproveite.
Talvez a única causa boa que tenha produzido seja o dar-me ensejo à aplicação desta coça.
Não seja, porém, isto bater em mim mesmo...

Ah! Thackeray, Thackcray, tu é que nos compreendes!
Tu é que nos sabes avaliar, porque somos talvez um produto da tua imaginação - convertido na realidade da lua observação...

Mas . . .

Que ao menos tenhamos também um pouco de bom, como a maçã do Paraíso, - que ao menos nos saibamos conhecer, que saibamos ao menos conhecer os outros!

E no íntimo - já que o mal é epidemia - que nós tenhamos uma Prosápia, sim, mas com qualquer quê de bom... Thackeray … Thackeray !

- O que vai lá pela outra, vida?...



ANTERO DA VEIGA (Arganil, Portugal, 1866 – Anadia, 1960)
in “A Farça ”–1910.

Imagem: pintura de WALTER CRANE (Inglaterra, (1845-1915).




Publicação nº 1237


1 comentário:

  1. Felicito o Autor deste texto, por conhecer bem a natureza humana, a qual pouco mudou no decurso dos milénios que nos separam do homem das cavernas.

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