quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

WANDA RAMOS - E correram os rios





WANDA RAMOS 
(Dundo, Angola, 1948 - Lisboa, Portugal,1998)

Poetisa, ficcionista e tradutora

A sua estreia literária deu-se com o livro de poemas Nas Coxas do Tempo, seguido por E Contudo Cantar Sempre e Poemas-com-Sentidos, obras em que o tema central é o tempo. Este tema tem prevalecido, também, ao longo da sua caminhada ficcional. 

O seu primeiro romance, Percursos (Do Luachimo ao Luena), galardoado com o prémio da Associação Portuguesa de Escritores, consagrou a autora como um dos nomes mais importantes da ficção portuguesa dos últimos anos. Construído a partir das suas memórias pessoais, recorda a sociedade colonial e dá a conhecer a sua visão da guerra colonial, sob um ponto de vista feminino.



in “Escritas” (excertos)



E correram os rios

Correram como rios as palavras
altas e soltas correram os rios na gente
rios de lava Lisboa inflamada acorrendo fremente
nos dias eu se abriram vinda das faldas vertida
dos dormitórios da cintura fumegante e mecanizada
Lisboa livre acorreu
enxameadas as veias avenida da liberdade
rossio terreiro do paço Belém
– e além na outra banda absurdo o cristo:
braços em cruz impotente –
e correndo os rios cada vez mais latos
até o súbito despedaçar-se da seda contra a amurada
afundadas as olheiras da vigília entornadas
as falas em busca do nexo – e achámos esta sorte
o sangue agitado o tempo:
uníssono o nosso grito
escancarado em cada rua
em passo de estar alerta
uníssono ressoou porém mais fundo.
E assim nos pergunto que águas nos lavaram tão de dentro
e levaram alamedas da liberdade acima
que rios tão feitos de luta e punhos? alegria?




Publicação nº 1253

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