domingo, 12 de fevereiro de 2017

OS RETIROS DAS HORTAS




OS RETIROS DAS HORTAS

No dealbar do século XX, Lisboa, como de resto outras capitais da Europa, era ainda, sob o ponto de vista social, uma cidade de contrastes chocantes. O fado, no entanto, lograra já libertar-se, em grande parte, das áreas marginais, instalando-se nas sociedades recreativas e conquistando a simpatia de gente de trabalho das mais variadas profissões, além dos boémios, seus indefectíveis cultivadores.
Mas o processo da sua higienização começara muito antes, na verdade anteriormente a 1846, com a saída para as hortas, aos domingos e dias santos, de cantadores, tocadores e simples apreciadores.

Vinha de longe esse hábito lisboeta das rapiocas no campo. Há notícia de em fins do século XVIII, princípios do século XIX, terem existido locandas largamente concorridas em Sete Rios, Laranjeiras, Lumiar e Loures, bem como das famosas patuscadas em Belas, pela mesma época, e das frescatas do tempo de D. Miguel. 

Utilizando os mais variados transportes, desde os burros de aluguer do Poço do Borratém e do Arco do Bandeira até à carruagem, passando pela caleche, pela tipóia, pela vitória e pelo breque, os lisboetas já então abalavam em animados grupos para os retiros de fora de portas, onde o vinho jorrava dos canjirões e a comida farta e bem apaladada não dispensava o acompanhamento de salada de alface, que fez deles os alfacinhas.

As hortas foram, com efeito, durante largos anos, o regalo das famílias da capital, que naqueles dias debandavam rumo aos arrabaldes para, em ambiente rústico, esquecerem as agruras da vida e desfrutarem as excelências do ar puro campesino.

Diz José Pedro do Carmo que as hortas “marcavam o seu dia grande às quartas-feiras de cinzas”. Então a cidade despovoava-se e os campos circunvizinhos, onde houvesse locanda, adega, restaurante, enchiam-se de gente alegre e folgazã para quem os comes e bebes constituíam o atractivo número um – mas não o único. Na verdade, segundo aquele autor, os retiros “tinham as suas características muito próprias, como o jogo do chinquilho, os cegos e respectivos moços a cantarem modinhas, acompanhadas à guitarra e à viola; o canjirão e as inseparáveis canecas; a poesia do cenário verdejante e o chiar da nora movida pelo esforço vagaroso do boizinho com os olhos vendados; o perfume natural das emanações do campo, sempre viçoso, e para remate o canto das avezinhas sobre as ramadas que formavam os caramanchões a abrigar-nos daquele sol ardente das tardes de Agosto.”

Não admira, pois, que com todos esses atributos os retiros das hortas atraíssem o lisboeta de qualquer condição social, simultaneamente divertido e sentimental, e que o fado lá encontrasse ambiente propício para se fazer ouvir, quer em reunião de gente modesta quer em pândegas que deram brado, em que participaram fidalgos, artistas, boémios, cantoras e bailarinas do S. Carlos e actrizes.

Foram muitos os retiros das hortas, uns mais famosos que outros, que coexistiam ou se sucederam.

Cantava quem queria ou quem sabia mas obedecendo ao puro espírito de amadorismo, de desprender ternura e beleza, incompatíveis com deselegantes interesses. Dava-se inteira e abertamente. E com que fervor! Exibia-se por amor da arte, no alcandor do espírito deliciando as assistências com delicados requebros de supremo e donairoso encantamento. Quantas vezes a guitarra soluçava o acorde e do lugar inesperado espontânea voz, masculina ou feminina, acudia impetuosa, veemente, ufana, cortando o ar em aleluias, espiritualizando a letra! Mimosos galanteios surpreendiam os presentes e os idílios acalentavam seu início em tom de rima. Ocorre-me uma quadra que ali ouvi e a que uma voz melancólica imprimiu particular brilho:

Toma lá colchetes d´ouro
Aperta o teu coletinho;
Coração que é de nós dois
                     Deve andar conchegadinho.                     

Alguns dos nomes: Perna de Pau (da Gertrudes), Horta das Tripas à Estefânia, Ezequiel ao Dafundo, Miséria na Estrada de Palhavã, Viteleira na Travessa dos Carros, Colete Encarnado (da Joana), José dos Passarinhos em Alcântara, Quebra Bilhas no Campo Grande.



in “Lisboa, o Fado e os Fadistas” de Eduardo Sucena (excertos)
Imagem: Retiro “Os Pacatos na Estrada de Sacavém” – gravura de J.Novaes

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