sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

POETAS SUICIDADOS





FERNANDO DACOSTA
(Caxito, Angola, 1945)

Romancista, dramaturgo e jornalista


POETAS SUICIDADOS

Viajar com Natália Correia era uma aventura ora apaixonante, ora desesperante, tais os imprevistos, os incidentes, os caprichos, as exaltações, os temores, que a possuíam.

Uma noite, vínhamos de Tróia de um encontro de escritores ibéricos, ela dispara-me enquanto atravessávamos o Sado num ferry-boat: «Não posso passar por Setúbal». Porquê, pergunto-lhe, estupefacto. «Uma cigana disse-me que este mês não devia entrar em nenhuma cidade com rio, além de Lisboa.»

Ironicamente, afianço-lhe: «Mas não passamos por lá. Há uma auto-estrada à saída do barco que nos leva por outro lado.»
Não havia – só bastantes anos mais tarde seria construída. 

Percorremos calmamente Setúbal sem que ela, na sua incomensurável inocência, se apercebesse de nada. «É bonita esta auto-estrada, tem casas à volta, nem parece uma auto-estrada», comentou.

«Apetece-me champanhe para o almoço!», exclamou num fim de manhã de domingo. Regressávamos a Lisboa depois de uma emocionante deslocação a Coimbra para apresentar um livro do poeta António Vilhena. Na véspera, estudantes proporcionaram-nos, em barcos engalanados de flores e dosséis, um passeio pelo Mondego – que a deslumbrou.

Jovens vestidos à época de Pedro e Inês tangem alaúdes e guitarras. Natália, uma mão aberta na frescura da água, outra fechada na haste de uma rosa, entoa (possuía uma voz magnífica) versos de cantigas de amigo. Populares acenam-lhe das margens sorrisos e simpatias.

Toda a natureza – pessoas, rio, peixes, vegetação, pássaros -, parece unir-se-lhe em sinfonia única, cósmica.

No Choupal, sentada num banco de pedra, lançará, após dizer poemas exaltando amantes trágicos, a ideia de um ciclo sobre poetas suicidados.

«Os grandes criadores acabam por desistir de viver. A inveja, o ciúme, a maldade, o cinismo, a hipocrisia, que os cerca amargura-os a tal ponto que lhes apressa a morte, lhes faz apetecer a morte. O José Régio foi um dos que sucumbiram, tal a campanha de ofensas que lhe moveram. Ele será o primeiro homenageado!»

Pressentindo que lhe poderia acontecer o mesmo, Natália tentava, dessa maneira, esconjurar, combatendo-as, as forças negativas que, à distância, a rondavam.

Um estudante grava numa árvore, ante o silêncio comovido do grupo, as palavras: «Ciclo dos poetas suicidados.»

O desaparecimento, pouco depois, de Natália Correia «suicidar-nos-à», por muito tempo, a todos nós.



in “Botequim da Liberdade”
Imagem: pintura de Louis Léopold Robert (Suíça, 1794-1835)




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