sábado, 4 de março de 2017

MÁRIO CESARINY - Mensagem e ilusão do acontecimento surrealista




MÁRIO CESARINY
 (Lisboa, Portugal, 1923 - 2006)

Poeta, pintor e historiador


MENSAGEM E ILUSÃO DO ACONTECIMENTO SURREALISTA


Pode-se ser surrealista sem se ter lido Breton. Pode-se ler Breton e não se ser surrealista. Pode-se ser surrealista e não se ser, realmente, mais nada. Pode-se não ser surrealista e prestar-se com isso excelente serviço a todos e ao surrealismo em especial. Isto diz-se porém das tarefas do conhecimento, que não das do saber, e eu não sei se anda clara, nas consciências actuantes, a diversidade que assiste a estas duas operações do espírito. 

Para mim, pelo menos, parece evidente que as tarefas do conhecimento – poético, na ocorrência – são únicas, pessoais e intransmissíveis, enquanto que as do saber, deduzidas daquelas, podem já ascender a leis e valorações que são filosofia, interpretação crítica, quer tramada de dentro, da parte de quem está, quer focada de fora – os que vêm ver estar – e aqui é que é impossível ser-se (ou criticar-se) determinada coisa sem se saber o que essa coisa é. Estou a pensar na crítica que não temos e na crítica de consolação que temos.(…)

Tenho na cabeça uma carta de António Maria Lisboa, que diz: “É às palavras-actos, não às palavras que supõem actos, que me dirijo». Máxima tão cruel não podia merecer mais valor citadino que o da prenda enviada pelo correio a falar de natal quando o mês era já o dos folguedos – quarta-feira de cinzas na arte e na literatura, cada vez mais arte e mais literatura, pois. (…)

Em torno do surrealismo «nascente», como, hoje, em torno do surrealismo «agonizante» fizeram crónica lá fora, os do cortejo e apito em direcção a casa, de livro branco e pantufa na mão. Entre nós, tal cortejo tem fim obrigatório na cor dos olhos de Fernando Pessoa a cair morto de bêbado em casa de cada um. (…)

Quanto ao valor (actual) da arte e da literatura (surrealistas), já se disse há tempo e não deu resultado: hoje, como há trinta anos, Mona Lisa ostenta o bigodinho que Dádá lhe doou. Aprendeu, no entanto, trinta novas maneiras de apará-lo: Mona Lisa Bigode Realista, Mona Lisa Bigode Surrealista, Mona Lisa Bigode Abstracto, Mona Lisa Bigode Socialista, Mona Lisa Bigode Fascista, Mona Lisa Bigode Existencialista, são as últimas mais elegantes saídas do literato convencido de que vai sair à rua com uma estrela na mão. 

Visto um pouco do pouco que há para ver nestas etiquetas escolásticas, entende-se: anda tudo a querer entrada grátis no espectáculo mais caro do universo: a transubstanciação da matéria.



in “Pirâmide-Antologia” - 1959


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