segunda-feira, 10 de abril de 2017

Poema de MÁRIO CESARINY dedicado a ANTÓNIO MARIA LISBOA - Ponto a Ponto

           



PONTO A PONTO


Enquanto três camelos invadiam o aeroporto do Cairo e o pessoal de terra loucamente tentava apanhar os animais
eu limpava as minhas unhas
quando acabava de ser identificada a casa onde viveu Miguel Cervantes, em Alcalá de Henares
eu saía para o campo com Rufino Tamayo
enquanto um português vivia trinta anos com uma bala alojada num pulmão
chegava eu ao conhecimento das coisas

Agora já não há braseiros e os destroços foram removidos
os animais espantaram-se
e como se isso não fosse desde já um admirável e surpreendente esforço na nossa acção de escritores
afogado num poço canta um homem

ORADOUR-SUR-GLANE
gritos brancos gritos pardos gritos pretos
não mais haverá braseiros - os destroços foram removidos

E não esquecendo o esforço daquele outro
que para aquecer o ambiente apareceu morto
e não enviou convite nem notícia a ninguém

Mundo mundo vasto mundo
(Carlos Drummond de Andrade)
os conspiradores conspiram
os transpiradores transpiram
os transformadores aspiram
e Deus acolhe tudo num grande cesto especial


A lei da gravidade dos teus olhos, mãe,
a lei da gravidade... Aqui está: é um poeta
num barco a gasolina não não não é um operário
com um martelo na mão muito depressa
os automóveis passam o rapazio grita
o criado serve (se não servisse, morria)
os olhos em vão rebentam a pessoa levantou-se
tantas crianças meu Deus lá vai o meu amor

Também ele passou trezentas vezes a rampa
- que estranhas coisas passaram! Os poetas é que sabem
Construção construção
progresso no transporte

ORADOUR-SUR-GLANE
Sou viens-toi
REMEMBER
Janeiro, 1953


in “Revista Árvore” - 1953


MÁRIO CESARINY, poeta e pintor surrealista (Lisboa, Portugal, 1923 – 2006).

ANTÓNIO MARIA LISBOA, poeta (Lisboa, Portugal, 1928 – 1953)




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