quarta-feira, 7 de junho de 2017

Poema de ANTÓNIO RAMOS ROSA dedicado a EGITO GONÇALVES

 
 
 
 
 

TELEGRAMA SEM CLASSIFICAÇÃO ESPECIAL
 
 
Estamos nus e gramamos.
Na grama secular um passarinho verde
canta para um poema lírico, para um poeta lírico,
que se nasceu
é certo que não cantou.

As paisagens continuam a existir.
As paisagens são suaves.
Continuam também a existir
outras coisas
que dão matéria para poemas.
A vida continua.
Felizmente que há ódios, comichões, vaidades.
A estupidez, esta crassa crença intratável, esta confiança
indestrutível em si mesmo,
é o que felizmente dá uma densidade, uma plenitude a isto.

Num mundo descoroçoante de puras imagens
é bom este banho de resistências, pressões, vontades, atritos,
é bom navegar.
Porque este presente é logo saudoso.
Na grama secular o passarinho canta.
Evidentemente que o poeta suicidou-se.

A vida continua.
Certas coisas que pareciam mortas
estão agora vivas ou, pelo menos, mexem-se.
Ausentes, dominam-nos.
Não é para nós que utilizam palavras,
que insistem,
não é para nós !
Estes grandes ornamentos, estes sábios discursos
fluem em visões, em ondas, como se não no presente.
Ter-se-á o presente extinguido?
A vida continua tão improvavelmente.

Na grama um passarinho canta.
Canta por cantar, ou não, canta.

Eu poderia, com rigor, agora
cantar:
Os anjos exactos
que empunham tesouras
de encontro aos factos
- ó minhas senhoras!

Ou rigorosamente ainda,
com veemente exactidão,
inutilizar o poema,
todos os poemas,
porque

Estamos nus e gramamos.

4 de Janeiro de 1952



ANTÓNIO RAMOS ROSA (Faro, Portugal,1924 – Lisboa, 2013), poeta, tradutor e desenhador.

EGITO GONÇALVES (Matosinhos, Portugal,1920 - Porto, 2001), poeta, editor e tradutor.

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