segunda-feira, 17 de julho de 2017

AMÁLIA - Dos poetas populares aos cultivados

 

 
 AMÁLIA RODRIGUES
(Lisboa, Portugal, Julho de 1920 – Outubro de 1999)

 
DOS POETAS POPULARES AOS CULTIVADOS

 
Em grande parte graças a Amália, a grande literatura portuguesa entrou no fado, com a não pequena ironia de, muitas vezes, um francês, Alain Oulman, a partir de certa altura ter contribuído para isso, numa excepcional articulação criadora de duas formações, a francesa e a portuguesa. A ambos se deve uma importante inflexão dos rumos da poesia e da música do fado, a partir de princípios dos anos sessenta.

É com Amália que o passo decisivo é dado, logo nos primeiros anos em que se afirma como uma estrela de primeira grandeza. Sem abandonar as letras do fado tradicional e os seus derivados, que de resto continuou a cantar ao longo de toda a sua carreira, é ela quem começa a procurar, a fazer musicar e a cantar uma série de autores que não se confundiam com os letristas típicos do fado.

Os mais cantados, como Pedro Homem de Melo e David Mourão-Ferreira, transportavam essa sensualidade para o plano dos impulsos genesíacos e da transfiguração erótica, o primeiro, aliás, mais ligado a uma tradição peninsular a que Jorge de Sena chamava tão desdenhosa quanto injustamente de “garcilorquismo minhoto”, e o segundo aliando todas as técnicas do Parnasianismo para a exploração da dialéctica amorosa, da esperança e do desespero e da explosão da sensualidade.

Mas outros autores devem ser considerados. Por exemplo, Sidónio Muralha ou Luís de Macedo, um mais próximo dos neo-realistas, outro pertencente ao grupo da Távola Redonda. E também autores a que poderíamos chamar “de fronteira”, gente ligada ao espectáculo e ao jornalismo, como Reinaldo Ferreira e Norberto de Araújo, que Amália também já canta por essa altura.

A voz de Amália, as suas intenções de leitura interpretativa, o recorte imponderável do fraseado musical e o equilíbrio mais ou menos instável posto na dicção, a colocação certeira dos melismas nos momentos em que o fado carece de expressividade, a transparente franqueza com que tudo é agenciado e que, felizmente, podemos apreciar hoje em excelentes recuperações discográficas, tudo isso transfigura versos que por vezes são perfeitamente banais em momentos de grande intensidade poética e… fadista.

É a partir de Amália, mesmo antes da colaboração genial que ela recebeu de Alain Oulman, estando ainda por estudar o papel que a canção francesa desempenhou na génese das músicas que ele escreveu para a nossa artista, que os fadistas passam a tornar-se muito mais exigentes quanto à qualidade literária e à autoria das novas letras que procuram arranjar para os seus fados.

Será injusto esquecer que Amália cantou excelentes letras populares e escreveu excelente poesia, que umas vezes cantou (Lágrima, Estranha forma de vida...) e outras se limitou a publicar. São poemas instintivamente relacionados com a sua maneira de estar na vida.

Nos seus versos, ela soube lançar mão de uma escrita poética intuitiva e certeira, formalmente muito ancorada na tradição da matriz popular, com uma grande fluência, belos achados e, por vezes, algumas agudezas quase maneiristas.

Amália soube incutir como mais ninguém um acento profundamente dramático à expressão daquilo que cantava. Não apenas por ser dotada de uma voz absolutamente extraordinária. A sua articulação por vezes centrava-se mais no significante do que no significado, mas acabava restituindo misteriosamente a este último todo o seu valor, e encontrou ou inventou melismas, inflexões verbais, tensões intra-silábicas, portamentos, arabescos e outros efeitos vocais, alguns porventura de uma inspiração mediterrânica bebida da Andaluzia à Córsega, mas todos eles únicos, pessoais, intransmissíveis e sobretudo singularmente adequados a traduzir uma entrega total à intensidade dos sentimentos, das dilacerantes violências da paixão à angústia mais torturada, à ternura mais límpida, ou à alegria simplesmente ingénua dos fados que ela cantava.

E também na medida em que a grande fadista cantou um vastíssimo leque de obras literárias que se distribuem por sete séculos da nossa literatura e da nossa identidade, podemos dar razão a David Mourão-Ferreira quando ele afirmou, na morte de Amália, ser ela um “heterónimo” de Portugal, o “heterónimo” feminino de Portugal.

 
Vasco Graça Moura - (Comunicação apresentada à Classe de Letras na sessão de 12 de Novembro de 2009) (excertos)
Imagem: pintura de José Viola

 
 
 
 
 

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