sábado, 8 de julho de 2017

AMÁLIA - Lágrimas para Amália

 
 
 
 
AMÁLIA RODRIGUES
(Lisboa, Portugal, Julho de 1920 – Outubro de 1999)

 
LÁGRIMAS PARA AMÁLIA

Amália ficou chocada quando Natália Correia leu, num serão em sua casa, extractos da peça A Pécora, um dos grandes êxitos do teatro português pós-25 de Abril.

Frequentadora das recepções da fadista, com David Mourão Ferreira, Vitorino Nemésio, Ary dos Santos, Alain Oulman, Vinicius de Morais, a escritora afastou-se delas nos finais da década de 60 para emergir, entre seguidores e admiradores próprios, no Botequim – onde se fixaria, imporia até ao fim da vida.

Demasiado voluntariosas e caprichosas, as duas depressa desconvergiriam. «Está uma beata horrenda», exclamava-me de Amália, Natália; «Tornou-se uma herege insuportável», contrapunha-me, de Natália, Amália.

Curiosamente, o período em que conviveram foi o mais pujante das suas carreiras. Amália revolucionou o mundo musical cantando Camões, Natália desafiou o regime escrevendo O Homúnculo (peça sobre Salazar), entre escândalos, polémicas, inquirições e debates públicos.

«Eram ambas excessivamente grandes, egocêntricas, possessivas para conviverem uma com a outra nos mesmos espaços. A solidão espiritual e intelectual que sentiam asfixiava-as, exacerbava-as por vezes até à insuportabilidade.

Cantar e escrever fizera-se a sua salvação – cantar e escrever entre pequenas cortes de algodão em rama com que tentavam aquietar o mistério inculcado em si pelo destino. Morreram da mesma maneira, a fugir dos seus quartos, de madrugada, as veias rasgadas pelo magma que as habitava, as desmesurava.

Amália e Natália tiveram vidas afectivas desniveladas, desconvencionais, como sucede aos que não saem à procura da paixão porque sabem que estão fora dela. Cedo perceberam que a felicidade amorosa não existiria para si, excluídas que foram, pela excepcionalidade transportada da sua simulação.

Dúplices, ver-se-iam transformadas em «ícones» de minorias exuberantes, papéis que velavam com indisfarçável deleite – Amália (predominando) nos grupos femininos, Natália nos masculinos.

«Eu não me sinto com uma idade, uma cor, um sexo só», diziam-me uma e outra, sem saberem do dizer de uma e outra. Frases, reminiscências, pensamentos idênticos repetiam-se nas suas reflexões com grande pudícia e imprevisibilidade: «Considero muito as pessoas que preparam a sua morte», por exemplo, exemplos de obsessões comuns. A ligação ao indizível, ao inexplicável tornou-se uma teia que as enovelou, macerou para sempre.

Fernando Dacosta, in “Nascido no Estado Novo”

 


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