sábado, 1 de julho de 2017

AMÁLIA – Triângulo Mágico

 
 
 
AMÁLIA RODRIGUES

(Lisboa, Portugal, Julho de 1920 – Outubro de 1999)

Camões deu-nos a língua, Pessoa o pensamento, Amália a voz. Eles constituem o triângulo mágico da nossa identidade, são traves mestras da cultura que nos individualizou, universalizou. Nem todos o terão, no entanto, entendido, pois a generalidade não configurou essa associação nem a importância, nela, de Amália Rodrigues. É costume tal acontecer aos excepcionais.

A cantora tinha uma presença única no mundo da música. Todas as transformações que lhe introduziu foram – embora gostasse de afirmar o contrário – cuidadosamente estudadas e encenadas por si. Como a saia, o xaile, a blusa, até aí em uso pelas fadistas não correspondessem ao que ambicionava, rompeu com a tradição e, na opereta Mouraria (que protagonizou com Alberto Ribeiro, em 1946), envergou um vestido comprido negro. A surpresa foi total.

Amália não apreciava actuar, por escassez de espaço, em retiros e casas de fado, pois precisava de uma zona-de-ninguém entre si e o público que lhe rolasse a voz antes de chegar aos outros, para melhor chegar. Seria o palco tornar-se-lhe altar de transfiguração e o vestido comprido preto essência de postura; depois, apaixonada pela grande poesia, introduziu-a no seu reportório, a que compositores de génio, como Alain Oulman, deram superior intemporalidade.

Oulman conheceu Amália Rodrigues em 1962, num terreno de campismo selvagem onde ela passava férias, na foz do rio Lisandro, junto à Ericeira, que comprara. Um dos seus objectivos ao procurá-la era levá-la a interpretar os poetas cimeiros de língua portuguesa. Assim aconteceu e assim surgiram discos seus com criações do autor de Os Lusíadas, de Cecília Meireles, de David Mourão Ferreira, de Pedro Homem de Melo, de Manuel Alegre, de Alexandre O´Neill, de Ary dos Santos. «Cantei-os porque para mim eram fados», justificou Amália.

Os seus lados ao mesmo tempo solares e nocturnos levavam-na com frequência da alegria à inquietação, da vitalidade à apatia, da sensualidade ao acabrunhamento, do profundo ao epidérmico, conseguindo nesse desdobramento agarrar elites e multidões como ninguém o logrou entre nós. De Erros Meus (Camões) ao Cochicho da Menina (popular) ela viajou por todos os registos e públicos numa diversidade sem matemática.

«As pessoas gostam de ouvir historiazinhas. As coisas que exigem reflexão são as que menos tocam as massas, é preciso, por isso, doseá-las», afirmará.

 

Fernando Dacosta, in “AMÁLIA – A RESSURREIÇÃO"
Imagem: fotografia de Eduardo Malta
 

 

 

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