domingo, 23 de julho de 2017

AMÁLIA – Um nome, um fado em muitos fados, uma voz.

 
 
 
AMÁLIA RODRIGUES
(Lisboa, Portugal, Julho de 1920 – Outubro de 1999)

 
UM NOME, UM FADO EM MUITOS FADOS, UMA VOZ

- Sinto que nunca canto hoje igual a ontem. Tenho a intuição do fado. Foi qualquer coisa que Deus me deu, mas depois o fado sai dentro de mim consoante o meu estado de alma, os meus nervos, as minhas emoções. Tudo se prende com a nossa interioridade. O fado ou é isso ou não é nada…

- Deus, para mim, é Deus. Sinto essa força dentro de mim. Acredito em Deus mesmo que não exista o céu. Não vale a pena tentar explicar. Não encontro explicação em palavras ou em teorias, tal como, por mais que uma pessoa me tente explicar o que é uma árvore, também não encontro uma explicação inteira.

- Cá dentro de mim, uma árvore é qualquer coisa mais forte, mais grandiosa, que a Botânica não consegue definir. Da mesma forma acredito em Deus plenamente. Ainda que tudo se acabe cá na terra. Acredito em Deus mesmo que a minha alma não vá para o Céu, nem para o Inferno, nem para o Paraíso… Sou uma pessoa inculta, não tenho vergonha de o dizer, mas esta é a minha forma de estar na vida. É a minha filosofia.

- Gostava de ser culta para exprimir a minha própria sensibilidade, para dizer uma palavra sem ter de dar uma volta ao Rossio até encontrar a palavra mais expressiva. Não tenho outras ambições. Não sou política, não gosto de vidas mundanas, nunca alterei a minha maneira de ser. Deixem-me ser quem sou…

- Colegas, compositores, intelectuais… Magoaram-me profundamente. Tanta calúnia, tanta mentira. Ao princípio, eu estava de olhos fechados, e não consegui entender porquê…

- Só não me perdoa quem não me conhece bem. Mas deixe-me chorar se não rebento!... Julgo que desejaram queimar-me dizendo que eu era um produto do fascismo, que era uma espia, uma contrabandista, uma bêbeda… Tantas mentiras horrorosas! Como hei-de curar essa ferida? Eu quero esquecer, mas dói-me muito este desencanto…

- Até chegaram a dizer que havia um subterrâneo no meu quintal por onde eu ia ter com o Salazar para ele se aconselhar comigo!... Disseram também que tentei envenenar Humberto Delgado, no Brasil… Isto é de uma imaginação incrível! Nunca admiti que pudesse haver tanta maldade.

- Foram calúnias! Foram mentiras tremendas que me destruíram a alegria e a saúde. Terei de pedir desculpa por já cantar o fado há 45 anos?... Não devia cantar o nosso fado só porque o regime era salazarista ou marcelista?

- Não sou servilista, tal como não sou uma revolucionária. Por mim, sempre cantei o fado sem pensar em políticas. Nunca apanhei nenhum comboio ou avião, a não ser aqueles em que me deslocava e desloco para ir cantar a qualquer terra. Cantar do jeito que eu sei e sinto. Cantar o nosso fado e o nosso folclore de que tanto gosto. Nunca tive apoios de nenhum governo nem do anterior, nem dos de depois do 25 de Abril.

- Nunca fui nem nunca serei uma revolucionária. Nunca quis fazer acreditar o contrário. Nunca me mascarei ( a não ser pelo Carnaval). Canto o fado que sinto, que gosto de cantar. Canto as letras que se identificam com a minha sensibilidade. Onde quer que eu esteja, onde quer que eu vá, é para cantar os meus fados e não para ir debater questões políticas com os governos… Quero ser o que sempre fui: a Amália que canta para toda a gente.

- Choca-me a fome em tantos países. Não sou insensível aos problemas do mundo que me rodeia. Mas sou por temperamento uma pacifista.

- Nunca mendiguei vistos para o meu passaporte. Nunca mendiguei contratos. Um dia, a minha empresária em Paris contratou-me para ir à União Soviética. Fui e cantei lá como em qualquer outro sítio. Estive no Circo Popov, estive com os coros do Exército Vermelho. O público soviético ouviu-me cantar e aplaudiu-me, como aconteceu em tantos outros países.

- Há uma coisa que é universal e toda a gente entende: é a força do sentimento que uma voz expressa; é a carga dramática do fado; é a melodia: é o timbre da voz.

- Eu gosto da minha terra, da minha casa, da minha família, dos meus amigos. Como é que eu, num país estrangeiro, ia viver sem a minha broa e a minha sardinha assada, sem as minhas sopas de feijão?! Como é que eu ia passar sem ver o Alentejo, sem ver Trás-os-Montes?! Tinha lá paciência para andar todos os dias em jantares e almoços de sociedade!

- Não tenho pretensões a poeta. Deus me livre! Mas ao escrever algumas letras para os meus fados, agora que estou desiludida de todos os meus sonhos, talvez seja, sim, uma forma de gritar, de dizer o que me vai na alma. Tenho pena de mim… Sonhei um mundo tão diferente… Sou uma pessoa de mãos abertas. Entrego-me à amizade sem tomar precauções. Mas há gente que engana tanto!...

 
(Excertos da entrevista feita, em 1985, pela jornalista Maria Augusta Silva)
Imagem: pintura de Camilo Ramos

 

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