sexta-feira, 1 de setembro de 2017

ALMADA NEGREIROS – As Quatro Manhãs – SEGUNDA MANHÃ

 


ALMADA NEGREIROS
(Trindade, São Tomé e Príncipe, 1893 — Lisboa, 1970)

Artista plástico, poeta, dramaturgo, romancista

 
SEGUNDA MANHÃ

P'ra que me meteria eu a ver por onde ia a vida
que dei por onde ia
e não em meu favor!
Eu perdi a vez de ser simples,
perdi a vez feliz de ignorar,
perdi a sábia ignorância,
perdi a graça de não saber.
Deixei passar a vez de ir na corrente
e de ser como toda a gente
às carambolas da sorte.

            ***
Eu perdi a vez de ser analfabeto,
esse segredo para não ser doutor
e para não saber também
o que as letras sabem
do mundo e de mim.

            ***
Eu perdi a vez de não ter instrução,
a vez sagrada de não saber ler,
a vez daquele que não sabe
que é como a de quem não vê.
Mas ser ignorante não doi
não dói tanto como não ignorar!

            ***
Eu deixei passar a vez de ir na onda
e de ter o entendimento repartido pelos mais,
começaram por ensinar-me as letras
e as letras acabaram por dar comigo
e eu vi-me então diante de mim
despegado da onda e da corrente
diferente de toda a gente
independente da multidão.

            ***
Eu perdi a vez de ser da multidão
(esta comodidade por mim perdida);
já deixei de fazer parte,
inteiro o destino que me fez
inteiro a vida me tornou.

            ***
Os meus gestos metade são meus
e metade ainda da multidão.
Eu incomodo-me a mim próprio,
é pequeno o meu corpo para mim!
Sou pior do que eu próprio
ou eu próprio não caibo em mim?
Como se eu estivesse no cinema
e visse do meu lugar
ser eu próprio o personagem
do enredo que está no programa;
como se eu estivesse diante do espelho
e no espelho a minha imagem
tivesse vida própria
que não dizia comigo
imóvel diante do espelho;
como se um disco de gramofone
ou a T.S.F.
dissesse com a minha voz
e eu ouvisse
o que nunca eu disse com a minha própria boca;
assim me encontrei a mim-mesmo
um dia
quando eu julgava fazer parte ainda da multidão.

            ***
Mas quem escreveu esse enredo
que eu represento na personagem de mim?
(Não! não é isto que eu quero perguntar)
Quem me fez o protagonista de uma vida que eu não sonhei?
Quem filmou o meu ser enquanto eu me sonhava?

           ***
O meu sonho é bem melhor do que no programa
que hoje o destino me dá!
Eu sempre sonhei com ser Eu
mas não como me vejo no filme,
nem como me olho no espelho,
nem como me oiço no disco,
nem como digo na rádio!

            ***
Quem alterou o espelho?
quem falsificou o disco?
quem torceu o enredo?
quem mentiu a minha voz?
Eu não aqueci quimeras
nem preguicei fantasias
nem rabisquei confusões,
nada que não fosse eu
e dignidade.
Eu não viajei aventuras
senão legitimidade.

             ***
Porque me trocam então por outro igual a mim
tão igual a mim que eu próprio já m'os confundo?
Porque há-de ser esse, tão igual a mim,
e não eu próprio de quem ele se faz o igual?
Porque há-de ser precisamente esse eu que me inventaram
e não este mesmo que eu me ganhei?

            ***
Acaso não é legítimo que eu me tivesse ganho?
Quem mais cuidaria de mim
ou melhor do que eu próprio?
E quem é que tem mais tempo do que aquele que necessita para si-próprio?
Sabeis o que seria de mim se eu próprio me não tivesse ganho?
- Um simples,
um para quem se marca a direcção das setas,
um anjo no meio de parafusos,
mais cinquenta quilos de gente no peso da multidão!

            ***
Assim ao menos eu sei perfeitamente
que aquele que eu sou no film,
aquele que eu estou no espelho,
aquele que eu oiço no disco,
aquele que eu falo na rádio,
é uma tradução de mim
com jeitos de agora,
onde cada qual tem a idade de todos!
oh todos!
todos ainda não é ninguém!
Hoje todos não é nada!
Amanhã talvez.
No futuro sim.
Quando todos forem a soma dos cada uns
quando cada cada for cada qual
então sim
então bravo
então eureka
todos já serão alguém!

            ***
Entretanto não é o celuloide que mente
nem o mercúrio do espelho,
nem a cópia do disco,
nem as ondas do ar,
e eu assisto-me a mim próprio
representando o que não sou
um papel que não faço
num enredo onde não existo
senão para que não se desacerte a multidão,
senão para que não se corte a onda,
senão para que não se altere a corrente,
senão para que o público siga o programa
e passe mais umas horas deste mundo!

             ***
Como hei-de eu - o próprio
livrar-me do público e da multidão,
livrar-me da corrente e da onda,
livrar-me de todas as cores da multidão e do público, da onda e da corrente?
Se bem que eu não faça parte deles
as suas imensidades cobrem o mundo
e com a forma do mundo parecem inteiras!

             ***
Como hei-de eu - o próprio
levar-me a salvo
e deixar em terra firme
a minha legítima vida intacta?
Hei-de gastar a minha existência inteira
a guardar para quando
a minha legítima vida intacta?
Por quanto mais tempo
digam!
por quanto mais tempo
peço-lhes!
hei-de estar comigo à espera?
Digam lá que não há-de chegar-me a vez
da minha legítima vida intacta!

            ***
Ao sabor da corrente deixar-me-ei ir na onda
e estarei bem atento até que chegue a minha vez.
Já tenho o hábito de andar comigo no meio da multidão:
já sei fazer-me sua parte sem me perder de vista.
Leve-me para onde me leve a multidão
eu a trago sempre bem justa a mim
a minha legítima vida intacta!

            ***
Tenho um amigo que também vai na onda
e tem uma história igual à minha.
Diz o amigo que a nossa história é muito antiga
e já os antigos lhe puseram nome
p'ra não confundir com as outras histórias.
Chamavam-lhe Eternidade
e era o sonho daqueles que querem mais do que têm.
O sonho não acabava
nem acabava a onda
nem acabava a corrente
nem acabava a gente.
Quem acha pouco a onda,
quem acha pouco a corrente
e ainda por cima quer ser gente
fica assim eternamente.

            ***
Mas por hoje basta.
Hoje já é muito tarde
hoje já se esgotaram todas as esperanças que havia para hoje
não serve de nada insistir.
Ainda não foi hoje que chegou a vez
da minha legítima vida intacta.
Não deram resultado todas as esperanças
Que eu tinha posto no dia de hoje.
Mas amanhã se Deus quiser
logo de manhã muito cedinho
todas as minhas esperanças começam outra vez
à procura da minha vez.
Já sei que primeiro vê-se a estrela do futuro,
antes do futuro vê-se a estrela,
dizem que a estrela está quasi pronta
para ser vista pela primeira vez uma madrugada
e assim todos os dias
sempre
até que eu acabe.

 
Imagem: Almada Negreiros – auto-retrato

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