sábado, 23 de setembro de 2017

IRENE LISBOA - Jeito de escrever

 
 
 
IRENE LISBOA
(Casal da Murzinheira, Portugal, 1892 – Lisboa, 1958)

Pedagoga, escritora e poetisa

Professora primária, especializou-se em questões pedagógicas na Bélgica, em França e na Suiça.
Na Seara Nova publicou uma série de estudos, depois reunidos em  Inquérito ao Livro em Portugal, 1945-1946, em dois volumes.
Como ficcionista estreou-se em Treze Cantarelos, 1926.
No campo da poesia surgiu com Um Dia e Outro Dia, Outono, Havias de Vir e Folhas Volantes.
Publicou poemas, contos, crónicas e diários.
 

in “Grande Livro dos Portugueses”

***

Palavras de Irene Lisboa
“Peguei nesta pena e olhei para esta folha de papel tão grande que me parece que jamais terei com que a encher… e veio-me um desejo infantil de me livrar de mim mesma, de me esquecer de como vivo e de como sou, de deixar de me sentir o meu eterno centro e periferia… É uma desejo de ruptura de certa coisa permanente, invisível, em mim; de um estado moral nefasto.”
 
***
JEITO DE ESCREVER

 
Não sei que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.

Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei que diga, não sei que pense.

Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!

Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago...
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas.
Mortas!

E por mais não ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro! Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados,
solta a outra, de pena expectante.
Uma que agarra, a outra que espera...

Ó ilusão!
E tudo acabou, acaba.
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?

Silêncio.
Nem pássaros já, noite morta.
Me cerro.
Ó minha derradeira composição! Do não, do nem, do nada, da ausência e
solidão.

Da indiferença.
Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada.
Noite vasta e contínua, caminha, caminha.
Alonga-te.
A ribeira acordou.


in “Antologia Poética”



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