domingo, 1 de outubro de 2017

ALMADA NEGREIROS – As Quatro Manhãs – TERCEIRA MANHÃ

 
 
 
ALMADA NEGREIROS
(Trindade, São Tomé e Príncipe, 1893 — Lisboa, 1970)

 
Artista plástico, poeta, dramaturgo, romancista


TERCEIRA MANHÃ

Quando cheguei aqui
o que havia estava no fim
e o que estava por vir
andava disperso pelo sonho de alguns.
Mas a maioria
vivia
o seu dia a dia
e todos contentes
por serem todos assim.
Eles não davam pelo fim
quanto mais pelo que já assomava mais além
- isto que já começava nos sonhos de alguém.

                         ***
E foi terrível isto de viver o que há-de vir
entre os que apenas usam o que ainda há.
Era como se tivessem apostado todos
em não me deixarem chegar
ao que eu andava a sonhar.
Enquanto pude fiz-me louco medido,
destes que andam à solta
sem ser preciso encerrá-los.
Encontrei exactamente a medida de escapar à medida deles
e sem estragar a medida de ninguém.
Sem eu o saber fiz todo um método
toda uma arte de atravessar a multidão.
Fiz-me invisível no simulacro de mim.
Mas guardava-lhes a surpresa
que tinha guardada em mim.
E foi aqui que eu me enganei:
A minha surpresa só serve para mim e para o futuro
e não cabe nestes dias de hoje
que já foram os sonhados por outros.
A minha surpresa ainda é só para mim
ainda é só o meu sonho que já nasceu para mim e para o futuro
e que tem apenas côr,
côr que ainda não tem nome,
nome que ainda não tem feitio,
feitio que ainda não tem perfil,
perfil que ainda não se desvenda,
é apenas inconfundível,
e apesar de ainda não estar registado
apenas o tempo sabe que já aqui chegou.

                          ***
E aqui me tendes chegado
ao único a que eu quis chegar:
saber o sítio da estrela
que ilumina o meu lugar.
Oh estrela do meu sonhar!
Sem a tua luz própria
sem o teu distante cintilar
tão fixo lá do teu lugar
eu não podia chegar aqui
o sítio do meu mistério.
Aqui me tendes alfim chegado
diante do meu próprio mistério.
Agora tudo é concorde e imenso
tudo se liga e conclui.
Nada do que eu faço é ainda provisório
como na minha meia vida de ontem,
a metade de espera da nova metade que vale por duas!
E assim tinha de ser:
eu jamais saberia nada
senão através das minhas próprias dimensões,
senão à luz da minha estrela,
à luz da aurora do meu mistério.
Que o pobre do mundo clama
para que desvendemos cada qual os nossos próprios mistérios!

 
Imagem: Almada Negreiros – auto-retrato

 

 



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