domingo, 22 de outubro de 2017

GOMES LEAL - O conto

 


GOMES LEAL
(Lisboa, Portugal, 1848 - 1921)

Poeta e crítico literário

O CONTO

O CONTO é uma das formas mais belas da literatura. É depois do poema a mais literária, a mais tradicional. Porque a História, elevando-se aos cimos gloriosos e talhados a pique da Filosofia, tem um fim único a utilidade, o ensinamento do Homem pelas grandezas e calamidades do Homem.
O Romance atirando para o meio da rua, à luz do sol ou do gás, toda a roupa suja da vida privada, ao rictus semibárbaro e banal desse cruel selvagem, a quem não tilintam as argolas do nariz, e que se chama o Vulgo, fazendo cócegas para a risada alvar, ou ladainhas tenebrosas para atrair o humor lacrimal, aspirando ao reedificamento da alma pelas misérias da vida, e pelo espectáculo servil do trivial, - faz mesuras ao turíbulo da popularidade.

 
O Conto não. Sendo uma velha forma de popular não tem ambições: e, sendo compreendido na mais alta acepção artística, como foi por Poë e Nathaniel Hawtorne, foge à longa orelha asinina do Vulgo, e ama a impopularidade, como um teólogo um papirus sacerdotal.
Foge às exclamações canalhas, e ao juízo prudhomiano do sr. Respeitável Público, que usa as lunetas d´oiro como um conselheiro.
É pela sua independência, como o poema, que é mais artístico. É especialmente, pela sua despretensão de utilidade, que é mais superior, menos humano.
 
- É como uma agulheta de neve que reflecte todas as glórias, todas as cambiantes do sol. Todas as paixões e todas as cores. O soluço e a facada do escárnio: o pano negro duma essa, e as cores vermelhas e altivas, como a ametista dum anel de um bispo.
O seu mérito é que pode ser filosófico, como a História, tão dramático como o drama, fisiológico como o romance, heróico como o poema, musical como uma ópera, moral como fabliau.
 
Todas as cambiantes lhe são permitidas. Todos os tons, todas as flutuações da Alma. Todas as agonias, todos os ritmos musicais. Todas as glórias, todas as decadências. Todas a belas nudezes, todos os monstros. Todos os seios lácteos de ninfas, todas caudas de dragões, e escamas de peixe. Todos os risos, todas as facadas. Todas as tentações, todas as pompas da carne. Todas as alucinações, todas as nevroses. Todos os charcos, todos os escarros luminosos. Todos os diamantes, todas as chagas.
 
Pode empregar, impunemente, as insolentes metáforas e as extravagantes antíteses; o vermelho dos cactos e as brancuras impecáveis das camélias: todos os efeitos de luz, e todos os prestígios de sombras. Não têm a mesma liberdade o Romance e a História.
 
in “Renascença”- Revista de crítica, literatura, arte e ciência - 1914

 

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