domingo, 5 de novembro de 2017

GUERRA JUNQUEIRO - A bênção da locomotiva




GUERRA JUNQUEIRO
 (Freixo de Espada à Cinta, Portugal,1850 - Lisboa, 1923)

Escritor, poeta, político e jornalista


A BÊNÇÃO DA LOCOMOTIVA

A obra está completa. A máquina flameja
desenrolando o fumo em ondas pelo ar.
Mas antes de partir, mandam chamar a Igreja,
que é preciso que um bispo a venha baptizar.

Como ela é com certeza o fruto de Caim,
a filha da razão, da independência humana,
botem-lhe na fornalha uns trechos de latim,
e convertam-na à fé católica romana.

Devem nela existir diabólicos pecados,
porque é feita de cobre e ferro, e estes metais
saem da natureza, ímpios, excomungados,
como saímos nós dos ventres maternais !

Vamos, esconjurai-lhe o demo que ela encerra,
extraí a heresia do aço lampejante!
Ela acaba de vir das forjas d'Inglaterra,
e há-de ser com certeza um pouco protestante.

 Para que o monstro corra em férvido galope,
como um sonho febril, num doido turbilhão,
além do maquinista é necessário o hissope
e muita teologia... além d'algum carvão.

Atirem-lhe uma hóstia à boca famulenta,
preguem-lhe alguns sermões, ensinem-lhe a rezar,
e lancem na caldeira um jarro d'água benta,
que com água do céu talvez não possa andar.




in "A Velhice do Padre Eterno", 1885


Sem comentários:

Enviar um comentário