terça-feira, 23 de janeiro de 2018

RAUL DE CARVALHO - Invocação



RAUL DE CARVALHO
(Alvito, Portugal, 1920 - Porto, 1984)
Poeta

As memórias da infância passadas no Alentejo manifestam-se em todos os seus livros de cunho autobiográfico. Chegou a Lisboa na década de 40 e tornou-se frequentador do café Martinho da Arcada, contactando com personalidades do meio literário.

Preocupado com a condição dos mais desfavorecidos, assumiu algumas afinidades com os neo-realistas. Conjugou esta preocupação com a aprendizagem de uma liberdade surrealista. 


in” Instituto Camões” (excerto)


***
Invocação

Ao murmúrio dos leitos vegetais,
À esbelta finura das espigas,
Á frouxidão dos seios despegados,
Ao sorriso de carne e de tabaco,
À rosa negra que os velhos aproveitam
Imóvel, pendurada à cabeceira,
E ao linho, ao linho, à brancura do linho,
Ao teu cabelo crespo e de veludo,
Ao vento, amigo vento, que o enfeita
De medronhos, de gosto a serra e vale,
A amoras maduras, riso fresco,
Um púcaro de leite ao rés da aurora,
Um banho seminu no rio límpido.


Contigo eu posso abandonar o mundo.
Damos as mãos - ou nem isso - e sabemos
Que de um ao outro vai correndo um rio
De natural e puro entendimento.

Se calha que adormeças, sou eu quem
Vela por ti bebendo-te nos olhos.
E o anjo que ficou desde criança
Brinca através do sono e da folhagem.

Contigo, juntos, vamos descobrir
Os medos, os mistérios, o invisível.
Vamos voltar a ser heróis e castos
E a ter dezoito anos - é possível!

Quero que venhas, pela noite, à hora
Em que as estrelas se debruçam, alto,
Em que os peixes, curiosos, se aproximam
Da linha de água, para ver a lua.

Quero que venhas num caudal de espuma,
No meio das algas, lentidão submersa,
E que tragas nos lábios a canção
Dos ciganos azuis de Andaluzia.

Quero que subas os degraus da noite,
Quero que ponhas devagar os pés
Neste leito de aroma e maresia
Que sabe aos quatro ventos do convés.

Que tragas uma âncora suspensa
Como medalha de santa ou de madrinha,
E que a primeira boca que te beije
Em terra, seja a minha, seja a minha!

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