sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

ERNEST WIECHERT – ‘FLORESTA DOS MORTOS’ - O testemunho sobre o terror nazi



ERNEST WIECHERT
(Alemanha, 1887 – Suíça, 1950)
Escritor e professor

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Foi um dos escritores mais sensíveis, mais humanos e, sem dúvida, menos revolucionário da Alemanha. Conta, no seu livro Floresta dos Mortos, os horrores do campo de concentração antes da guerra. Preso em 1938, foi um dos milhares de alemães sobre que o nazismo «experimentou» os métodos que depois iria aplicar a milhões de homens de todas as raças e de todas as crenças.

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O testemunho sobre o terror nazi

«Um povo inteiro tinha sido transformado, em alguns anos, num povo de lacaios: lacaios nas cátedras das universidades, lacaios nos tribunais, lacaios a ensinar nas escolas, a conduzir a charrua, no tombadilho dos navios, no exército, lacaios no gabinete de trabalho dos escritores. Lacaios em toda a parte onde havia uma palavra a pronunciar, um gesto a fazer, uma acusação a abafar, uma crença a proclamar.

Quando de madrugada ainda, na luz cinzenta do amanhecer, esses milhares de homens se juntavam para a chamada da manhã, curvados e tiritantes sob as bátegas de chuva, muitos deles apoiados em longas varas, outros, gravemente enfermos, que os seus companheiros amparavam, alguns levados em macas improvisadas, quando o vento fazia flutuar farrapos de nevoeiro em volta das colunas em marcha, ocultando-as agora, descobrindo-as depois na luz lívida, quando ao pé de uma árvore ou de um candeeiro jazia um moribundo, mostrando à luz do amanhecer um rosto já de além-túmulo, julgava-se assistir a uma cena da vida do inferno, saída da terra como um pesadelo, à visão de um inferno como jamais o pincel de nenhum pintor, o buril de nenhum gravador igualou, porque nenhuma imaginação humana, genial que fosse, poderia alcançar uma realidade que não teve igual há muitos séculos, nem talvez em tempo nenhum. 

Como compreender que eram as duas partes dum só e único povo, que falavam a mesma língua, que tinham adorado outrora o mesmo Deus, tinham recebido da mesma forma o baptismo e a confirmação; do mesmo povo a que Goethe pertencera, que passara pela guerra dos Trinta Anos e pela Grande Guerra, e cujas mães e avós tinham cantado, à noite: «Ergueu-se a lua…» De um povo que se achava agora dividido, não pela riqueza ou a pobreza, a piedade ou a impiedade, nem por duas línguas, duas religiões  ou duas naturezas diferentes, mas por um dogma político, por um vitelo de ouro de papel, oferecido ao culto e que, adorado ou desprezado, decidia da subida de cada um na escala das honras, ou o precipitava nos braços de Moloch para ser vilipendiado, torturado, imolado, riscado da existência e da memória. 

Nada do que existia anteriormente contava, nem a obra realizada, nem a bondade, nem o trabalho e o esforço de uma vida inteira. Contava apenas o presente, a fé jurada ao ídolo, o ajoelhar diante de César, a cega repetição de uma fórmula, o patético falso duma pseudo-cultura, a gritaria dos demagogos.

Não se funda uma civilização sobre o sangue dos homens. Sobre o sangue ou a violência podem fundar-se estados, mas os estados não passam de castelos de cartas ao grande vento da eternidade. O que permanece é fundado por outros. Não por carcereiros nem carrascos. Nem sequer por generais. E esses que fundam alguma coisa não derramam o sangue, excepto o seu próprio, com que alimentam a sua obra imortal. O espírito não morrera ainda neste mundo, nem o amor, nem a beleza. Existiam ainda, mesmo desprezados, mesmo vencidos. E um dia voltariam a erguer o seu pendão ofuscante acima dos ossários das nações.»



in “Mundo Literário” - 1946



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