quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

LUÍSA DACOSTA – Comboio (II)



LUÍSA DACOSTA
(Vila Real, Portugal, 1927 – Matosinhos, 2015)
Escritora

***

Comboio

II

Jogam-se as cartas com um baralho sebento e avinhado. Os parceiros enfrentam-se resolutos, confiantes na sorte, pesando mentalmente os cachos compactos que rodeiam o adversário. 

Noutro grupo, um homem (meu Deus, como são inesperados os pequenos funcionários!) conta aos companheiros de sempre o «Romeu e Julieta», que acabou de ver no cinema de bairro. Deleita-se na descrição do céu estrelado, do amanhecer, e é notável o seu realismo ao encarnar Julieta na cena final (pobre múmia de cachecol desbotado, esquecida que o sobretudo lhe começa a rarear nos cotovelos!).

A luz do tecto toma uma cor esverdeada de expectoração ao derramar-se pela fealdade do compartimento - amálgama de sujidade, cestos e cascas de tremoços. Atado à perna dum banco, viaja um cão, que de vez em quando geme. O seu gemido é acompanhado por um olhar (e nisto consiste a tragédia) humano, mais humano do que o dos homens empastados de vinho, amargura e vida difícil.

Lá for a noite. Por vezes luzes isoladas, em breve desaparecidas para sempre. A todas a locomotiva grita o seu adeus, que perfura a escuridão corno ronco impotente de pavão solitário.

Ao fundo do compartimento, o actor que se recusa a representar o seu papel. Trata-se dum adolescente loiro semelhante a um fruto dourado entre hortaliças podres. Não, ele não renunciará. Não será como esses. Vencerá a vida, ela cederá ao seu amplexo viril com êxtase virgem de mulher possuída pela primeira vez. Os seus olhos tornam-se duros, alheios, fixos. O lábio inferior recurva-se-lhe de decisão e sensualidade, como flor estranha, a um sol tropical.

Entretanto o compartimento esvaziou-se. Um a um os grupos foram ficando pelas estações (a maior parte eram empregados do caminho de ferro, que num hábito de todos os dias fazem a mesma viagem). 

Os poucos que ficaram cabeceiam e adormecem embrulhados em modorra e no frio da noite - que entra pelas bandeiras sem vidros das janelas. Dos lábios entreabertos do vagabundo (partirá para a Índia no próximo barco) solta-se um fio de saliva, que faz um regato e uma poçazinha brilhante na gola do seu casaco preto e ensebado.


28 de Fevereiro de 1951 (entre o Porto e Régua).


in “Árvore” – Folhas de Poesia –1953


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