quinta-feira, 31 de maio de 2018

AL BERTO - Corpo



AL BERTO
(Coimbra, Portugal, 1948 - Lisboa, 1997)
Poeta, pintor, editor

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Corpo

corpo
que te seja leve o peso das estrelas
e de tua boca irrompa a inocência nua
dum lírio cujo caule se estende e
ramifica para lá dos alicerces da casa
abre a janela debruça-te
deixa que o mar inunde os órgãos do corpo
espalha lume na ponta dos dedos e toca
ao de leve aquilo que deve ser preservado

mas olho para as mãos e leio
o que o vento norte escreveu sobre as dunas

levanto-me do fundo de ti humilde lama
e num soluço da respiração sei que estou vivo
sou o centro sísmico do mundo 




quarta-feira, 30 de maio de 2018

ISTVÁN ÖRKÉNY – A Morte do Actor


ISTVÁN ÖRKÉNY
(Budapeste, Hungria, 1912 –1979)
Escritor

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Foi uma das figuras mais importantes da dramaturgia moderna húngara e um dos nomes mais célebres da literatura húngara no estrangeiro estando traduzido em vários idiomas. Os seus textos breves deixam ao leitor múltiplas interpretações sobre o seu sentido, e onde quase sempre se evocam situações banais fazendo uso de um humor fortemente satírico, procurando a crítica social e política.
                                      
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A MORTE DO ACTOR

O popular actor Zoltán Zetelaki caiu desmaiado hoje à tarde numa travessa da Avenida Ülloi.

Foi levado pelos transeuntes à clínica mais próxima, onde se revelaram vãs todas as tentativas de reanimação, mesmo com as mais recentes conquistas científicas, tipo o pulmão de aço. O ilustre actor faleceu às sete e meia da tarde, depois de uma agonia prolongada: os seus restos mortais deram entrada no Instituto de Medicina Legal.

A despeito deste acontecimento trágico, a sessão da noite do Rei Lear decorreu sem problemas. Embora um pouco atrasado e notoriamente cansado no primeiro acto (teve de recorrer ao ponto várias vezes), Zetelaki retomou gradualmente o seu brilho e conseguiu interpretar a morte do rei com tanta convicção que o público lhe ofereceu uma salva de aplausos.

Depois foi convidado para um jantar, nas recusou dizendo:

- Hoje tive um dia difícil.




in “Histórias de 1 minuto”

terça-feira, 29 de maio de 2018

JOSÉ MANUEL ANES – Fernando Pessoa e os Mundos Esotéricos



JOSÉ MANUEL ANES
(Lisboa, Portugal, 1944)
Professor, antropólogo
                                    
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FERNANDO PESSOA E OS MUNDOS ESOTÉRICOS

Fernando Pessoa percorreu muitos dos caminhos mais significativos do Esoterismo - «o modo oculto de fazer», assente no «modo oculto de saber» - e fê-lo sempre com interesse e entusiasmo, por vezes mesmo apaixonadamente, «sentindo tudo de todas as maneiras», deixando aí os nervos e a “pele” – tal como a “serpente” – em todos eles, com sofrimento e dúvida, com comprometimento e empenhamento (em muitos deles): «temos de viver intimamente (mesmo o que repudiamos)». 

Comprometeu-se nesses caminhos, sendo tudo e sendo nada – mas sendo «o nada que é tudo», o «mito», que é «Verdade», mesmo que não seja «verdadeiro» - e foi livre em todos eles – «não se subordinando a nada, nem ao próprio ideal» - sem deixar de lhes pertencer de algum modo e de os defender. Quando defendeu, “cavaleirescamente” a Maçonaria, já no final da vida, foi não só pelo interesse iniciático da Ordem, mas também, devido à imperiosa luta pela Liberdade, que essa defesa implicava e que poderia assegurar.

Passou por todos esses caminhos, que não são nenhum caminho, em demanda do «mistério supremo» - num «dissipar gradual das ilusões», embora passando depois por outras ilusões – no supremo desígnio de «ser português», isto é, de «ser tudo». Num «grande acto de magia intelectual, criou, em sintonia com esta demanda, uma notável obra literária que reforçou esse Império da Cultura e do Espírito - «a Pátria da língua portuguesa» - que será (ou é) o Quinto. Considerou «estarmos na Era do Desejado», embora não esperasse pelo Regresso do Rei, mas pelo «Regresso daquilo que o Rei simbolizava». Quis, e conseguiu, ser um «criador de mitos», um «estimulador de almas», um «despertador das energias» nacionais (não só no seu tempo, mas mais tarde), ao ponto de ter gritado: «É a Hora!».

Passou pela Teosofia (…), pela Gnose (…), pela Rosa-Cruz (…), pela Maçonaria (…), pelos Templários (…), pela Alquimia (…), pela Magia (…), (…).

(…) Mesmo que Pessoa – Poeta, Mago e Alquimista – não tivesse atingido a imortalidade através da sua obra literária, essa “simples” vertigem iluminadora ter-lhe-ia assegurado a Imortalidade espiritual, a realização da Grande Obra – tal como a «serpente» que, ao deixar a pele em todos os caminhos, segue aquele caminho que não existe (o do «desassossego»), aquele em que se encontra só consigo mesma e com os deuses que foi criando, os quais são ela própria…



in “FERNANDO PESSOA E OS MUNDOS ESOTÉRICOS” – 2004 - (excertos)





segunda-feira, 28 de maio de 2018

LEONARDO COIMBRA – AFONSO LOPES VIEIRA – TEIXEIRA DE PASCOAES


LEONARDO COIMBRA
(Borba de Godim, Portugal, 1883 - Porto, 1936)
Filósofo, professor, político

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AFONSO LOPES VIEIRA
(Leiria, Portugal, 1878 - Lisboa, 1946)
Poeta

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TEIXEIRA DE PASCOAES
(Amarante, Portugal, 1877 - 1952)
Poeta, escritor

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Em Portugal, e nos seus poetas novos, há a confirmação e o exemplo da natureza dialéctica da Arte… 

Lopes Vieira parte do homem e do lar; mas esse homem ouve, lá ao longe, lá no fundo, misteriosas vozes, que para o seu lar trazem a natureza, rasgando, sobre a noite serena do estagnado luar, o coração da casa. Falas do ser e falas da noite são harmoniosas e claras, de estagnado luar silencioso. 

Eis agora outro Poeta, cujo lar e cujo coração são rasgados sobre a noite, mas é a noite de sombra e tempestades. Se há luar, é porque os espectros se vestiram de branco, esse luar é inquieto e remoinhante em sorvedouros de abismo. É Pascoaes. 

Lopes Vieira é o heleno tocado de ternura cristã, sereno, fácil e harmonioso. Pascoaes é o cristão, que, à força de mergulhar nos abismos do Espírito, encontrou dentro de si a Natureza.




in “O Criacionismo”



domingo, 27 de maio de 2018

ANTÓNIO MANUEL PIRES CABRAL – A gaveta do fundo




ANTÓNIO MANUEL PIRES CABRAL
(Chacim, Macedo de Cavaleiros, Portugal, 1941)
Escritor, poeta, dramaturgo, professor

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A gaveta do fundo

A gaveta do fundo: onde guardava
brasas e jóias de família –
ou seja, reservas de calor
para os dias do frio que aí vêm.

A gaveta do fundo:
forçada a fechadura, saqueada,
desmantelada em tábuas e ferragens.

Dada a beber às altas labaredas
que, bebendo, multiplicam a sede,
em vez de a extinguir.


sábado, 26 de maio de 2018

MARIA BÁRBARA JÚDICE DA COSTA – Cantora lírica


MARIA BÁRBARA JÚDICE DA COSTA
(Lisboa, Portugal, 1870 – 1960)
Cantora lírica

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Cantora lírica, uma das mais famosas do séc. XIX, com uma fabulosa carreira no estrangeiro. Estudou dez anos no Conservatório Nacional e estreou-se no Teatro Nacional de São Carlos, em Abril de 1888, numa récita de caridade e depois em 1890 em "La Gioconda", ao lado de Eva Tetrazzini.

Fez uma carreira brilhante actuando em Roma, Nápoles, Moscovo, México, Madrid, Buenos Aires, Amesterdão, Málaga, Trieste, numa carreira apenas interrompida para ter os três filhos. Foi mãe da actriz de cinema Brunilde Júdice (1898-1979), nascida em Milão. 

A sua carreira levou-a várias vezes a Madrid, Barcelona, Palma de Maiorca e esteve em Portugal no Coliseu dos Recreios, em 1906, durante dois meses, novamente em 1910 e 1913. 

Em 1933 esteve com Amélia Rey Colaço no São Carlos, fazendo teatro declamado. 
Fixou residência em Milão, tendo regressado a Portugal em 1943. 


in “O Leme”


sexta-feira, 25 de maio de 2018

CRISTOVAM PAVIA - Ao meu cão



CRISTOVAM PAVIA
(Lisboa, Portugal, 1933 – 1968)
Poeta

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Publicou, em 1959, 35 Poemas, a única obra poética editada em vida, na qual se reconhece a originalidade da sua poesia.

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AO MEU CÃO

Deixei-te só, à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação
De tudo... e apesar disso, sem o pedir, tentando
Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.

Não percebi a evidência de que ias morrer
E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas.
Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior angústia, a debater-te com a morte.

E deixei-te só, à beira da agonia, tão aflito, tão só e sossegado.




quinta-feira, 24 de maio de 2018

AGUSTINA BESSA-LUÍS – VIEIRA DA SILVA (pintora)



                 

AGUSTINA BESSA-LUÍS
(Vila Meã, Portugal, 1922)
Escritora

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VIEIRA DA SILVA
(Lisboa, Portugal, 1908 — Paris, França, 1992)
Pintora

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Vieira da Silva

Os portugueses são a gente mais insincera que há. Por isso são raramente grandes artistas. Em Vieira da Silva há o desafio extremamente íntegro que é a sinceridade. Mais do que uma virtude, ele representa e facto a síntese do diálogo com o divino, quase a provocação de alguém cujo métier é corromper-nos. Deus não se aceita senão a partir desse capricho humano levado ao limite que é a sinceridade. Em Vieira, a sinceridade tem um carácter e punição. Ao mesmo tempo que é capaz de apreciar a vida, mantém-se alheia aos seus favores cono se se tratasse duma corrupção.




in “Longos dias têm cem anos” (excerto)
Imagem: Vieira da Siva (autoretrato)  



                     

quarta-feira, 23 de maio de 2018

DANIEL FARIA - As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões



DANIEL FARIA
(Baltar, Paredes, Portugal, 1971 – 1999)
Poeta

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Escolheu a vida monástica, sendo considerado, por muitos críticos, o maior poeta místico português do século XX.
A sua poesia fundamenta-se na procura do Mistério de Deus.

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AS MULHERES ASPIRAM A CASA PARA DENTRO DOS PULMÕES

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.
É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas
Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.




terça-feira, 22 de maio de 2018

JOÃO VILLARET – Condecoração no Brasil


JOÃO VILLARET
(Lisboa, Portugal, 1913 - 1961)
Actor, encenador, declamador

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Festa do Itamarati, na qual João Villaret foi condecorado pelo Governo Brasileiro com as insígnias do oficialato do “Cruzeiro do Sul”, em 27 de Julho de 1957.

A este propósito transcrevo as seguintes palavras de Villaret:

“Vou-lhes contar uma história minha passada no Brasil para mostrar o que é a mentalidade, o que é a simplicidade, o que é a graça brasileira. Na minha última estada no Brasil em 1957 – vou lá desde 1939 – foi-me conferida, pelo Governo da Nação Brasileira, o Oficialato do Cruzeiro do Sul. 

Eu recebi uma carta protocolar pedindo para passar no Ministério dos Negócios Estrangeiros, para receber essa condecoração. E fui. Alguns amigos meus quiseram fazer o favor de me acompanhar. Muitos portugueses, muitos brasileiros e eu senti-me muito rodeado nessa altura tão expressiva para mim.

Quando lá cheguei, o Ministro dos Estrangeiros que era então o Dr. Macedo Soares, recebeu-me com toda a sua amabilidade e na sala onde me ia ser dada a condecoração, mandou chamar todos os funcionários do Hitamarati para assistirem ao acto, o que profundamente me sensibilizou. 

Indaguei do protocolo – eu nunca sei muitas coisas de protocolo, devo dizer, nem de coisas oficiais, nem burocráticas – mas perguntei como é que devia agradecer.

Disseram-me que no final eu me dirigisse ao Ministro e fizesse o meu agradecimento. Assim se passou e no final, quando ia agradecer dizendo: Senhor Ministro, eu quero agradecer a V.Exª… ele volta-se para mim, e com a maior das simplicidades, diz-me assim: João Villaret, não agradeça, recite, para nós ouvirmos. Foi recitando três poemas que eu agradeci a condecoração que o Governo Brasileiro me dava: o primeiro, Camões, o segundo, Manuel Bandeira e o terceiro Olavo Bilac.

 1º - Aquela triste e leda madrugada…
 2º - Irene Boa
 3º - Soneto: Aos meus amigos.”




in “João Villaret – Sua Vida… Sua Arte…
Autor: Mário Baptista Pereira




domingo, 20 de maio de 2018

AGUINALDO FONSECA – Mãe Negra



AGUINALDO FONSECA
(Mindelo, Cabo Verde, 1922 - Lisboa, Portugal, 2014).
Poeta

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Foi o primeiro poeta a utilizar a «África» como substância poética cabo-verdiana.
Publicou um único livro de poesia, intitulado Linha do Horizonte.

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MÃE NEGRA

A mãe negra embala o filho.
Canta a remota canção
Que seus avós já cantavam
Em noites sem madrugada.
Canta, canta para o céu
Tão estrelado e festivo.

É para o céu que ela canta,
Que o céu
Às vezes também é negro.

No céu
Tão estrelado e festivo
Não há branco, não há preto,
Não há vermelho e amarelo.
— Todos são anjos e santos
Guardados por mãos divinas.
A mãe negra não tem casa
Nem carinhos de ninguém…
A mãe negra é triste, triste,
E tem um filho nos braços…

Mas olha o céu estrelado
E de repente sorri.
Parece-lhe que cada estrela
É uma mão acenando
Com simpatia e saudade…




DAVID MOURÃO-FERREIRA - Paraíso



DAVID MOURÃO-FERREIRA
(Lisboa, Portugal, 1927 - 1996)
Escritor, poeta
                                   
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Paraíso

Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.


sábado, 19 de maio de 2018

HOMENAGEM DE MIGUEL TORGA A MIGUEL DE UNAMUNO



MIGUEL TORGA
(São Martinho de Anta, Portugal, 1907 – Coimbra, 1995)
Poetas e escritor
                                    
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MIGUEL DE UNAMUNO
(Bilbau, Espanha, 1864 – Salamanca, 1936)
Romancista, dramaturgo, poeta, filósofo

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Homenagem de Miguel Torga a Miguel de Unamuno

UNAMUNO

D. Miguel…

Fazia pombas brancas de papel
Que voavam da Ibéria ao fim do mundo…
Unamuno Terceiro!
(Foi o Cid o primeiro,
D. Quixote o segundo.)

Amante duma outra Dulcineia,
Ilusória, também
(Pátria, mãe,
Ideia
E namorada),
Era seu defensor quando ninguém
Lhe defendia a honra ameaçada!

Chamado pelo aceno da miragem,
Deixava o Escorial onde vivia,
E subia, subia,
A requestar na carne da paisagem
A alma que, zeloso, protegia.

Depois, correspondido,
Voltava à cela desse nosso lar
Por Filipe Segundo construído
Com granito da fé peninsular.

E falava com Deus em castelhano.
Contava-lhe a patética agonia
Dum espírito católico, romano,
Dentro dum corpo quente de heresia.

Até que a madrugada o acordava
Da noite tumular.
E lá ia de novo o cavaleiro andante
Desafiar
Cada torvo gigante
Que impedia o delírio de passar.

Unamuno Terceiro!
Morreu louco.
O seu amor, por ser demais, foi pouco
Para rasgar o ventre da Donzela.
D. Miguel…
Fazia pombas brancas de papel,
E guardava a mais pura na lapela.



in “Poemas Ibéricos”