quinta-feira, 19 de julho de 2018

FERNANDA DE CASTRO – Ao Fim da Memória



FERNANDA DE CASTRO
(Lisboa, Portugal, 1900 – 1994)
Escritora

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É difícil realizar um poema, tecnicamente perfeito, sem que a técnica deturpe, diminua ou empobreça a Ideia. É difícil construir uma obra musical sem que a carpintaria invisível perturbe a pureza ideal dos sons; mais difícil, porém, é que dois seres humanos se aproximem, na ânsia de se encontrarem, sem que fique reduzida a estilhaços o puro cristal das suas almas!

Acordei esta manhã com dores de cabeça e logo pensei que fosse um princípio de gripe. Mas não, eram os sonhos, os sonhos desta noite, que não cabiam nem cabem nas quatro paredes da minha cabeça. Desta vez não havia nestes sonhos nem monstros apocalípticos, nem florestas eriçadas de setas ou de lanças, havia estrelas, havia música, havia perfumes. Onde estaria? No Céu? Não, porque cheirava a mimosa, porque havia o marulhar, quase o ciciar das ondas contra os rochedos. Na terra? Também não, porque não sentia o chão debaixo dos pés, porque flutuava sem peso numa atmosfera mais ténue, mais fluída. Onde, então? A meio caminho entre a Terra e o Céu, onde os pesadelos se transformam em sonhos e os braços em asas?



in “Ao Fim da Memória”






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