quinta-feira, 5 de julho de 2018

IRENE LISBOA – Solidão



 IRENE LISBOA 
(Arruda dos Vinhos, Portugal, 1892 – Lisboa, 1958)
Escritora, professora, poetisa

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SOLIDÃO

Dou por mim umas vezes por outras a observar os homens e as mulheres com certa curiosidade indiscreta.

Ontem, estava ali sentado na minha frente um homem que pela primeira vez aqui veio. Um professor de liceu, doutoral e vazio. Já nos conhecíamos. Mas ele, coitado, aproveitou ainda esta ocasião para alardear a sua seca, a sua vã ciência, embora com ares de enfado. Fátuo, com os olhos cansados e grandes e o riso bem-educado, aborrecia-me. Mas julgas encantar, pensava eu…

Há bocado também aqui esteve Luísa. Veio do hospital; já se julga melhor. Vem tratar da roupa da sua gente, dar ordem àquele filho… como ela diz.

Quem a viu! Mas agora aparenta uma tranquilidade que nunca lhe conheci. Nos seus olhos há um riso fixo, que mete dó. Perdeu toda a sua antiga animação, aquele atrevimento alegre que lhe era peculiar. Falando do marceneiro de baixo, quando ele trabalhava na minha casa, em Alcântara, dizia que ele tinha os olhos galadores. Hoje não havia de o dizer, nem sequer de o pensar. Pobre Luísa!

Falo-lhe suavemente e acho-a destituída, roubada de toda a sua graça. É outra… Como se muda depressa! A Luísa era uma mulher caprichosa e expedita. Hoje nem mostra tê-lo sido. O borrachão do marido explorava-a e moía-a de sustos e de ciúmes. Coitados, qual dos dois se despedirá mais cedo da vida?

O professor do liceu, a Luísa e ainda outros levam-me a estudar-me e a descobrir-me, mas neles… É neles que eu me pretendo projectar e até reconhecer, e entender. Reconhecer-me em todo o geral e em todo o particular. Sem piedade nem espécie de favor!

Somos cruéis connosco próprios? Mas tudo me parece necessário…
E um só, um solitário, no fim de contas, é sempre um exagerado e um curioso.



in “Solidão”




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