ARY DOS SANTOS
(Lisboa, Portugal, 1937-1984)
Poeta, declamador
***
Minha Mãe Que Não Tenho
Minha mãe que não tenho meu lençol
de linho de
carinho de distância
água memória viva do retrato
que às vezes mata a sede da infância.
Ai água que não bebo em vez do fel
que a pouco e pouco me atormenta a língua.
Ai fonte que não oiço ai mãe ai
mel
da flor do corpo que me traz à míngua.
De que Egito vieste? De qual Ganges?
De qual pai tão distante me pariste
minha mão minha
dívida de sangue
minha razão de ser violento e triste.
Minha mãe que não tenho minha força
sumo da fúria que fechei por dentro
serás sibila virgem
buda corça
ou apenas um mundo em que não entro?
Minha mãe que não tenho inventa-me primeiro:
constrói a casa a lenha e o jardim
e deixa que o teu fumo que o teu cheiro
te façam conceber dentro de
mim.
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