segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

ALVES REDOL – Gaibéus



ALVES REDOL
(Vila Franca de Xira, Portugal, 1911 – Lisboa, 1969) 
Escritor

***

(…) Como rajada de vento, os ceifeiros marcham pela seara adiante, brandindo alfaias, derrubando espigas.

Na sua frente, os cachos adejam à viração, como um mar crispado de mareta que eles querem estagnar.

As cachopas e as velhas já arfam pelo ímpeto do trabalho, mas não podem dar tréguas; os capatazes continuam alertas. Arrastam-se sem alma nos braços, cabeça em rodopio, dentes fincados. (…)

Na crista das marachas os capatazes espiam sempre.

- Dêem a porrada pequena, que o arroz está cabeçudo, eh, gente!...

- Que raio de serviço!... Cheguem atrás!

Aquele vai deitando o olho às curvas tostadas das pernas das mulheres, descompostas pelo pendor dos troncos no lameiro.

Safo de fadigas, belisca-lhes com a vista o capite das pernas. A saia de baixo de uma delas está rasgada e tem manchas de sangueira pisada.

O capataz afasta a vista e sente ganas de a mandar desferrar.

- Ora o raio!...

Dá a volta na maracha para se afastar dela, mas o rancho descreve agora uma linha sinuosa, a procurar jeito ao trabalho, e a saia rasgada fica de novo à sua frente.

Já lhe parece que todas as saias de mulheres se rasgaram e têm manchas de sangueira pisada.

Ali ao pé dele grita uma papoila – como um charco de sangue que a ceifeira deixasse o seu rasto.



in “Gaibéus”


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