quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO – Maria Augusta



MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
(Lisboa, Portugal, 1890 - Paris, França, 1916)
Poeta, contista
                                   
***

MARIA AUGUSTA
                                              A José Mântua

No primeiro andar do prédio nº 57 da Rua Augusta, vê-se uma tabuleta com os seguintes dizeres:

«AU NOUVEAU PARIS»

CONFECTIONS POUR DAMES

Mme ROSA SILVA.

Era nesta casa que, ainda há dois meses, trabalhava Maria Augusta… Hoje, não; hoje já não trabalha…

**
História vulgar e banal, a desta rapariga.
Filha dum pedreiro e de uma criada de servir, que o seu nascimento transformara em «mulher a dias», viera ao mundo apenas como preço dum prazer…

Aos quatro anos, sua mãe, «para se ver livre dela» durante o dia, metera-a na mestra. Saíra aos oito, sabendo o alfabeto: «- Nada, que numa modista já podia ganhar um tostãozito por semana.»

Por isso, entrou para casa duma vizinha que trabalhava para as mulheres dos operários do bairro. Passava todo o dia a fazer recados: ia comprar dez reis de chá, pôr o caixote do lixo à porta, levar um vestido, ouvir a descompostura inevitável: «- Faça favor de dizer lá que a saia ficou uma porcaria! Os forros não prestam para nada! Assim não me serve! O que não falta é modistas!»

Passados seis meses, saíra desta casa e fora para outra; depois para outra, para muitas mais, até que aos 17 anos se encontrara no «importante atelier «Au noveau Paris» - mal parecia que um estabelecimento frequentado pela sociedade elegante, tivesse um nome português – ganhando 17 vinténs diários: tantos vinténs quantos os seus anos…
**

Era muito formosa. Os seus sedosos e abundantes cabelos negros, coroavam um rosto encantador. Os seus lábios vermelhos e viçosos, pedindo beijos ardentes, serviam de cofre a uns pedacitos do mais puro marfim. A sua pele, branca e acetinada, era o invólucro dum corpo escultural e exuberante de vida…

**

Um dia, na rua, um homem murmurou-lhe ao ouvido a seguinte frase:

- «Como é linda!»

Maria, ao chegar a casa, pegou no seu pequeno espelho, colocou-o diante dela e, passado um quarto d´hora, estava finalmente convencida de que lhe haviam dito a verdade! Sim, não havia dúvida, era «muito bonita» …

***

Como todas as mulheres, adorava os vestidos e as jóias.
Uma vez um sujeito, idoso já, ofereceu-lhe, diante duma ourivesaria, um anelzito de dois mil réis. Ela aceitou entusiasmada. O sujeito idoso pediu-lhe, em paga, um beijo. Ela deu-lhe vinte.

Passados dias, um garboso mancebo convidou-a para o acompanhar ao teatro. Havia de recusar semelhante gentileza? Por certo que não…

Findo o espectáculo, o seu companheiro meteu-se num trem com ela e, Maria, como não podia negar coisa alguma àquele que lhe proporcionara três horas tão agradáveis, deu-lhe tudo quanto ele lhe pediu…

***

Vertiginosamente foi caminhando para o terrível e irremediável «fim» …

Os seus lábios, hoje, já não são tão vermelhos, embora os cubra com carmim; a sua pele já não é tão fina e tão branca, embora a esfregue todos os dias com glicerina, cobrindo-a depois com pó d´arroz. No entanto, Maria Augusta, hoje, já não trabalha…




in "Primeiros Contos"





Sem comentários:

Enviar um comentário