quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

HERNÂNI CIDADE - À Perturbadora


                              HERNÂNI CIDADE
(Redondo, Portugal, 1887 — Évora, 1975)
Historiador, crítico literário, professor

***
À PERTURBADORA
Olho-te muita vez tão fixamente,
com tal desejo a crepitar no olhar,
que ficas a pensar, vaidosa e crente:
— Mais duas lâmpadas no meu altar…

Vê lá, porém, não te envaideça a ideia
que nestes olhos — lâmpadas votivas —
arda o álcool subtil que em nós ateia
paixões candentes como chamas vivas…

Eu sou romeiro de mais duma santa
e a todos presto um culto assim — banal.
Se não encontro — a ventura é tanta! —
mais que fragmentos do meu santo Graal!…

De alguém eu amo a santidade calma
e os gestos brandos e pacificantes…
E, envolta em seu olhar, minha alma
veste alma túnica em rituais distantes…

Há outra — inacessível Peregrina! —
em que adoro a perfeição sonhada,
fê-la o Senhor numa hora sossegada,
sem descuido ou tremor na mão divina…

Mas em ti amo a graça acidulada
por uma gota de cinismo ingénuo;
muito mais perturbante e desejada
que o vinho mais alcoólico do Reno!

E amo-te a boca… irregular gomil.
Quando abre em riso, sente-se evolar
não sei que odor de sensação subtil…
(Fermenta nela os beijos que hás-de dar?…)

E a graça dos teus olhos pequeninos!
São duas frestas dum "hyaly" do Oriente,
onde a tua alma — uma sultana ardente —
às vezes surge, a fulminar destinos!

Mas o que mais me turba é o mistério
da tua carne em febre de desejo,
e, assim, a arder, radiando em halo etéreo,
como se a Virgem lhe aflorasse um beijo…

Eis quanto eu amo em ti. É muito?… É pouco?…
Paixão… não creio. Isto é - bem podes ver,
de menos, para seguir-te como louco,
mas demais para te olhar sem estremecer!



in ‘Antologia de poetas Alentejanos’


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