terça-feira, 30 de abril de 2019

SEGUNDA GUERRA MUNDIAL - RENÉ CHAR - Pobreza e Privilégio


RENÉ CHAR 
(França, 1907 - 1988)
Poeta
     
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Durante a Guerra, o poeta engaja-se na Resistência, onde foi figura de destaque, adoptando o codinome de Capitão Alexandre. Sua obra então sofre um hiato, pois o autor recusa-se a publicar durante a Ocupação alemã. Publicação que é retomada ao fim do conflito, já então tendo sua obra profundamente marcada pelo mesmo.

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 POBREZA E PRIVILÉGIO (II)

... Não quero esquecer nunca que me obrigaram a ser - por quanto tempo? - um monstro de justiça e de intolerância, um simplificador emparedado, um personagem ártico que se desinteressa do destino de todos aqueles que não se lhe unem para abater os cães do inferno.

As prisões em massa de israelitas, as sessões de escalpe no comissariado, os raids terroristas dos polícias hitlerianos sobre as aldeias estarrecidas, levantam-me do chão, dão ao cieiro do meu rosto uma bofetada de ferro fundido vermelho. Que inverno! Paciento, quando durmo, num túmulo que os demónios enfeitam com punhais e tumores.

O humor já não me salva. O que me deprime, e a seguir me arranca a mim mesmo, é que no interior da nação a que se cortou a crista por meio de correntes discordantes, seguidas de poderes grotescos e relativamente complacentes - exceptuando a repressão da agitação operária e as cruéis expedições coloniais, adaga que o ódio de classes e a eterna cupidez enterram a espaços nalguma carne previamente excomungada - possam ser tão numerosos os indivíduos pensantes que se entregam com galhardia à esparrela do torcionário e se alistam nas suas legiões.

Nenhuma obra de exterminação dissimulou tão mal os seus objectivos como esta. Não compreendo, e se compreendo, aquilo que descubro é aterrador. Nesta medida o nosso globo não seria, hoje à noite, mais do que a bola de um grito imenso na garganta do infinito esquartejado. É possível e é impossível.

1943



in “Segunda Guerra Mundial Uma - Antologia Poética – Sammis Reachers

 




segunda-feira, 29 de abril de 2019

ANTÓNIO FEIJÓ - Pálida e Loira


ANTÓNIO FEIJÓ
(Ponte de Lima, Portugal, 1859 - Estocolmo, Suécia, 1917) 
Poeta

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Apesar de na sua poesia se reflectirem a obsessão da decadência e a ironia do desencanto, assume sempre uma atitude aristocratizante perante a vida e a arte, o que, aliado à perfeição formal dos seus versos, lhe dá jus ao primeiro lugar entre os poetas parnasianos portugueses.

in "Portugal Século XX"

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PÁLIDA E LOIRA


Morreu. Deitada num caixão estreito,
pálida e loira, muito loira e fria,
o seu lábio tristíssimo sorria
como num sonho virginal desfeito.

Lírio que murcha ao despontar do dia,
foi descansar no derradeiro leito,
as mãos de neve erguidas, sobre o peito,
pálida e loira, muito loira e fria.

Tinha a cor da rainha das baladas
e das monjas antigas maceradas
no pequenino esquife em que dormia.

Levou-a a morte em sua garra adunca,
e eu nunca mais pude esquecê-la, nunca!
pálida e loira, muito loira e fria.

 





domingo, 28 de abril de 2019

BEATRIZ COSTA - 'A Brasileira do Chiado dos Anos 30'! - (VII)


BEATRIZ COSTA
(Charneca do Milharado, Portugal, 1907 - Lisboa, 1996)
Actriz de teatro e cinema

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Perto do Teatro da Trindade, em Lisboa, fica o célebre café ‘A Brasileira’ do Chiado.
Nessa altura, uma senhora não frequentava lugares em que os homens permanecessem…

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A BRASILEIRA DO CHIADO DOS ANOS 30!


Diogo de Macedo, escultor, crítico de arte e director do Museu de Arte Contemporânea de Lisboa. Um dos meus melhores amigos. É dele o célebre busto em que eu estou de lábios pintados de vermelho forte. Essa obra deu que falar. Lamento não ter ficado com a magnífica escultura em que eu estou tão bem retratada no mármore. Com ele aprendi a gostar de pintura. Indicava-me livros de arte e, várias vezes me emprestou os mais caros da sua biblioteca, como a Enciclopédia Skira, os álbuns de grandes mestres e biografias.

Gualdino Gomes, director da Biblioteca Nacional, talvez por ter vivido nessa fartura não deixou um livro seu. Só as recordações d´A Brasileira dessa época davam um volume de muitas páginas! Gualdino era mestre de espírito. Vestia-se sempre de negro; impecavelmente escovado. Usava chapéu de modelo especial, uma espécie de mazantini, mas de feltro mole, e uma bela capa preta de corte londrino. Era exactamente aquela figura do reclame do vinho do Porto Sandeman que vem na Vogue. Acredito que tenha sido ele o motivo de inspiração para o artista que desenhou o anúncio, que tanto brilha na Quinta Avenida de Nova Iorque.

Bernardo Marques, que o Brasil conheceu e aplaudiu, era um artista ímpar. No Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro estiveram expostas durante vários dias algumas das suas obras mais representativas. Infelizmente, foi uma homenagem póstuma, pois o grande artista suicidou-se por motivos ignorados na sua residência em Lisboa.

Almada Negreiros, um dos mais ilustres frequentadores d´A Brasileira. Homem de mil talentos. Pintor, poeta, teatrólogo, cenarista, etc. Casado com Sara Afonso, pintora vitoriosa, não teve dúvida em se apagar como artista para se dedicar à «construção» da felicidade deste homem magnífico. Não frequentava A Brasileira, raras vezes aparecia, mas quando o fazia trazia com ela aquele sorriso tão nosso, tão português.

Silva Tavares, poeta popular de grande valor, aparecia n´A Brasileira, mas nem sempre se sentava. Um dia escreveu-me um bilhete com a seguinte quadra:

Se o homem lá tiver giz
E pedra para escrever,
Podes pedir, Beatriz,
Um café para eu beber?

Foi um homem que teve as suas dificuldades na vida, mas acabou nos braços da glória. São célebres as letras que fez para algumas das mais belas canções da época.
Foi muito criticado por estes versos da canção «O Dia da Espiga», da revista O Cabaz de Morangos:

Maria,
          São teus olhos azeitonas,
Cachopa,
          Os teus lábios qual cereja!
          E os teus seios cachos d´uvas, que abandonas
          Á vindima desta boca que os deseja!

Ora todos sabem que os cachos de uva pendem da parreira… Daí a crítica aos seios caídos da cachopa. Fez o meu retrato em quatro versos de sete sílabas, que é uma perfeição:

Eu gosto da Beatriz,
           Acho-lhe uma graça imensa!
        Não pensa aquilo que diz…
     Mas diz aquilo que pensa.

(continua)


in “Sem Papas na Língua” – Memórias - 1974