JOSÉ GOMES FERREIRA
(Porto, Portugal, 1900 -
Lisboa, 1985)
Poeta, escritor
***
Pertenceu à geração dos
poetas militantes do Novo Cancioneiro
identificados com a corrente neo-realista.
***
O lado de trás do cenário
Todos os dias, mal salto da cama e escancaro a janela de par em par,
entra-me pelos olhos dentro, ainda remelados do pasmo do sono, a paisagem das
traseiras do meu quarto – mistura cubista de saguões, pátios,
arroz-dos-telhados, chaminés, retalhos de céu, capoeiras, roupa estendida,
escadas de salvação…
De pijama, meio tonto com a claridade da manhã, começo por me debruçar
no peitoril para ver se descubro o cão da vizinha da cave que ladrou,
torcionário, a noite inteira. Olha! Lá está ele, o maldito!, agora a dormir,
cinzento e enrolado, à sombra da nespereira que estoirou a placa de barro do
jardinzeco – enquanto no quintal ao lado as galinhas, com a aplicação teimosa
dos pesquisadores metafísicos, procuram no terreiro grãos inexistentes.
Depois, a abrir a boca, ponho-me a analisar, com cuidados de pintor
ultra-realista (desses que sonham ter máquinas fotográficas de carne exacta nas
retinas), as minúcias do panorama que recebi por meu quinhão de beleza no
mundo.
Nas varandas das casas em frente, as criadas lavam montes de peúgas,
cuecas e lenços que prendem nos arames com grandes gestos repuxados. Aqui e ali
surgem, de vez em quando, vultos rápidos de damas de roupão chinês a sacudirem
panos moles para pretextos de ondear os braços nus. Dos poços dos saguões rompem
vozes de crianças, sujas de gritos descompostos, bolas de trapos e caixotes de
lixo. A água dos contadores canta a sua longa frescura monótona nos tanques de
cimento. Os lençóis pingam prata e sabão. E os pássaros das gaiolas entoam as
mesmas canções dos pássaros livres com ferrugem.
Oh! como compreendo o entusiasmo do meu vizinho do segundo esquerdo, um
ser balofo, de camisola de lã, pêlos no peito, carne de cogumelo e suspensórios
caídos. Assim que rapa a barba, abre a varandinha de ferro que deita para a
escada de salvação e ali fica, durante minutos suspensos, a gozar a felicidade
de existir, esquecido de destinos e preso às manchas verdes das ervas, à
ternura da roupa a escorrer nos alguidares e, sobretudo, ao céu azul que não se
cansa de ser azul.
Às vezes repara em mim e dá-me os «bons dias». E a sua voz feliz
completa a música concreta da manhã magnífica, em que se confundem os assobios
encaracolados dos canários com a água das torneiras a rumorejar nas talhas, o
cacarejo das galinhas, o ruído do sol no zinco e aquele pregão que vem do lado
de lá da rua, por cima dos telhados, e sabe tão bem a legumes frescos e a
imitações do Cesário…
Sim, compreendo, até ao frio mais fundo do esqueleto, a alegria daquele
pobre diabo, habituado desde o bibe a extrair beleza das goteiras, das
manilhas, do casinhoto dos pombos do rés-do-chão, dos cartuchos de espinhas
atiradas aos gatos, dos muros salitrosos, das pias, do sabão amarelo e das
canastras a brilharem peixe.
Compreendo-o tão bem que não acharia extraordinário que aquele mamífero
de enorme volume romântico, enternecido pela visão das urtigas, dos talos de
couve e dos vasos de salsa, exclamasse, deslumbrado, como se estivesse diante da Serra de Sintra:
- Que lindo panorama!
Ou concluísse, a apontar para a fileira de camisas enforcadas na corda:
- E que belo espectáculo o da natureza!
*
Mas a escada de salvação do meu prédio não se limita a ser o mirante
favorito daquele bicho de carne esponjosa. Serve também de Anfiteatro de
Reunião das senhoras vizinhas que ali se concentram em má-língua de convívio,
durante as melhores horas do dia.
Horas de trabalho, a descascar ervilhas e a discutir os preços dos
géneros com as varinas e as hortaliceiras, e horas de recreio amargo, a trocar
queixumes e suspiros a respeito das últimas catástrofes e lástimas públicas.
Não param as gargalhadas, os comentários, os berros, as ameaças, os pedidos, as
descomposturas: «Ó Dona Margarida, empresta-me aquilo?»… «Ó senhora Mariana: já
veio o correio?»
As criadas levam recados, confidenciam poucas-vergonhas, esventram as
casas dos patrões. As intrigas escorregam, nervosas, de degrau em degrau. E,
volta e meia, vai tudo raso. «Sua desavergonhada! Bem a vi, há dias, entrar na casa do vizinho, sua esta! À socapa, sua porca! Pela escada de salvação, sua
aquela!»
E à tardinha, quando a penumbra desdobra as asas de morcego verde-sombra
do crepúsculo, os homens arrastam para os patamares as cadeiras predilectas e lêem
em sossego o tumulto dos jornais.
Ninguém, em suma, parece lembrar-se da intenção camarária ao mandar construir
aquela escada que devia apenas sugerir labaredas, mangueiras, apitos estrídulos,
pânico, donzelas salvas por bombeiros-heróis, capacetes reluzentes…
Mas não.
As crianças descem-na a correr para irem jogar o berlinde. As mulheres enfeitam-na
de manjericos que os maridos regam, no relento da noite, com lentidão lírica. Os
namorados sobem-na com os olhos… (E para eles, aquela escada só acaba nas nuvens!).
Em resumo: se um dia houvesse incêndio no meu prédio, os inquilinos correriam
alucinados para as janelas da frente – e atiravam-se para a rua!
in “O Irreal Quotidiano” – Histórias e Invenções
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