JOÃO GASPAR SIMÕES
(Figueira da Foz, Portugal,
1903 — Lisboa, 1987)
Dramaturgo, crítico
literário, tradutor
***
DA CULTURA E DA ERUDIÇÃO (I)
É lamentável o emprego que se faz em Portugal dos termos cultura e erudição. Chama-se, indiferentemente, a um homem culto ou erudito. E, no entanto, a diferença é flagrante, é irredutível. Entre nós abundam os eruditos. Os cultos são raros. E mesmo àqueles a quem com maior propriedade se chamaria cultos, a designação se não aplica convenientemente, porque, com frequência, a sua cultura não passa duma forma de erudição.
Ser
erudito é saber ou ter conhecimento memorativo de muitas obras, factos ou
documentos. A erudição diz, pois, respeito à faculdade memorativa do homem; a
cultura à sua capacidade de compreensão e assimilação – isto é, à totalidade
das suas faculdades de re-criação individual das experiências alheias.
A erudição ensina o homem a reproduzir, com fidelidade, as formas – e apenas as formas – da cultura; a cultura
filtra-lhe o seu espírito. Daí o erudito ser incapaz de transmitir do que
aprendeu, aquela elasticidade, aquele fluxo de essências que estampa na conversa
e na obra do não-erudito – um vaivém, uma amplidão, um contínuo regresso às
fontes da sua vitalidade ideológica e sensível – que nos aproxima do universo e
nos faz adivinhar a extensão da sua existência
humana.
O erudito aceita os conhecimentos alheios com a mesma passiva
inactividade individual como o tradicionalista aceita a tradição. De resto um
erudito é, sem excepção, tradicionalista. Tanto um como o outro recebem a massa
de experiências pretéritas sem tentar reagir sobre elas.
(continua)
in – “PRINCÍPIO” – Publicação de Cultura e Politica (1930) – Renascença Portuguesa
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