domingo, 13 de outubro de 2019

ARMANDO CORTEZ – Carta à Sapataria Lord




ARMANDO CORTEZ
(Lisboa, Portugal, 1928-2002)
Actor, encenador

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Ao longo de 50 anos de carreira, representou aproximadamente 150 peças de teatro, encenou outras 50 e foi responsável pela tradução, adaptação ou co-autoria de perto de 30 textos dramáticos.

Participou ainda em cerca de 20 séries de televisão, em mais de uma dezena de telenovelas e em, pelo menos, 20 filmes nacionais e estrangeiros, no cinema.

Como grande parte dos actores da sua geração, teve a sua passagem obrigatória pela rádio, dando a voz ao teatro radiofónico.

A par da sua actividade profissional, envolveu-se intensamente, desde 1982, no projecto da Casa do Artista, a que, juntamente com outros colegas, conseguiu dar forma e ver inaugurada em 11 de Setembro de 1999.


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CARTA DE ARMANDO CORTEZ À SAPATARIA LORD - 1970


Excelentíssimo Senhor Augusto Amorim
Digníssimo Administrador da Sapataria Lord


Armando Cortez, actor e cliente da sapataria Lord, de 42 anos de idade e 39/40 de pé, vem junto de Vossa Excelência expor a seguinte e dolorosa situação:

Há uns meses, adquiri na conceituada sapataria Lord uns sapatos pretos a que Vossa Excelência mandou fazer o preço especial de 300 escudos.
Caso Vossa Excelência não se lembre do modelo, pode recordá-lo facilmente: são sapatos rigorosamente iguais aos expostos na montra da sapataria Galã, em saldo, ao preço de 195 escudos.

A diferença de 105 escudos despendi-a eu com gosto e sincera alegria, pois que essa verba ia em directo benefício de Vossa Excelência, pessoa que muito estimo e a quem devo inúmeras atenções.
Não é isso que está em causa.
O que está em causa, e até hoje não teve solução satisfatória, é o que passo a expor:

Esses sapatos foram comprados para serem utilizados em cena, na peça “A Pobre Milionária” estreada há meses no Teatro Monumental.
Logo no inicio da sua utilização, os referidos sapatos, ou melhor, o esquerdo, passou a romper-me regularmente a meia do mesmo pé, tendo feito esse louvável trabalho em 6 pares de peúgas de seda, de cerca de 50 escudos cada par.

Já me importavam, portanto, os sapatos em cerca de 600 escudos, quando me resolvi a apresentar na “Lord” a minha reclamação.
Fui pronta e gentilmente atendido, como sempre na casa, e foi-me comunicado que o caso teria remédio, que seriam os sapatos desmanchados – forrados de novo, pois era o forro precocemente roto que provocava os buracos nas peúgas.

Disseram-me ainda, com ar entendido, que além de os forrar de novo, iam aumentá-los um pouco “para o dedo não tocar”, e a coisa assim ficaria sanada.

Eu ia ver. E vi, vi de facto os sapatos voltarem como novos e uma factura de 140 escudos para pagar pelo arranjo.
Paguei e ficaram-me assim os sapatos aumentados no preço e no tamanho.

E, em vez de andar calçado com sapatos da minha medida (39/40), passei a ostentar praticamente um submarino em cada pé, tropeçando constantemente, pois que, pelo preço, os referidos submarinos não podiam vir equipados com periscópio, o que entendi perfeitamente.

Acrescia, porém, o facto desagradável de eu ter deixado de poder arrumar os meus submarinos burguesmente debaixo da cama, mas ser obrigado a recolhê-los regularmente na Base do Alfeite, o que me ficava um pouco fora de mão por via terrestre e um pouco fora de pé por via marítima.

Por essa altura, já eu tinha investido nos sapatos-submarinos cerca de 740 escudos (300 escudos do preço comercial; 140 escudos na sua transformação em submarinos e 300 escudos de peúgas inutilizadas).

Nunca eu lamentaria esta diferença de preço entre estes sapatos e os de 195 escudos de modelo igual, expostos na sapataria Galã, cujo dono nem conheço e de cujo irmão nunca fui sequer conhecido, quanto mais amigo.
Nunca eu lamentaria pois esta ligeira diferença de 545 escudos, se os sapatos-submarinos não continuassem inexoravelmente, regularmente, ferozmente a fazer-me buracos noutros tantos pares de peúgas.

Decidi-me então a voltar à “Lord” e fazer a entrega solene dos sapatos-submarinos a um empregado de Vossa Excelência que me disse não poder resolver nada porque o Sr. Nunes estava de férias…
Daqui inferi que quando o Sr. Nunes está de férias, têm os clientes da “Lord” que andar descalços, contrariando assim uma ponderada postura municipal e arriscando-se à respectiva sanção policial.
Esta situação arrasta-se há já bastantes semanas com todos os perigos inerentes.
É a solução deste intrincado problema de pés que o signatário pede licença de colocar nas mãos de Vossa Excelência.

Permitindo-me sugerir a Vossa Excelência me forneça outro par, ou outro Nunes.


Cumprimentos pessoais do

Armando Cortez




in “Armando Cortez -1928-2002”








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