terça-feira, 19 de novembro de 2019

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO – O Caixão



MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
(Lisboa, Portugal, 1890 — Paris, França, 1916)
Poeta, contista
                                    
***

O CAIXÃO


                                                  a Ricardo Teixeira Duarte



 ... E, no meio da alegria ruidosa dessa ceia de rapazes, a voz grave do Patrício Cruz fez -se ouvir:

Há de haver três anos, numa linda tarde de Abril, estava eu sentado na minha varanda, lendo o jornal, quando de súbito os meus olhos se fixaram em dois moços de fretes que, a passo regular, caminhavam conduzindo um grande caixão forrado de vermelho.

Ao passarem por defronte de uma taberna, pararam, pousaram o lúgubre traste e entraram no estabelecimento...

A noite vinha caindo serenamente e enquanto os dois homens saboreavam lá dentro o ‘‘divino licor’’, o caixão jazia cá fora, à borda do passeio...

Os transeuntes, achando o facto vulgar, nem sequer lhe lançavam um olhar distraído... No entanto, ele, ali, na rua atravessada continuamente por numerosos entes vivos, era como que um cartaz anunciador da morte!...

Sempre com os olhos pregados nele, pus -me a meditar e, meditando, fantasiei um par de jovens noivos, cheios de vida, alegres, felizes, avançando ternamente enlaçados, murmurando doces palavras d’amor, fazendo mil projectos para o futuro e que de repente tropeçassem no hediondo monstro que, inexorável, lhes clamaria numa gargalhada estrídula, horripilante: – ‘‘Folgai! Folgai que eu vos
espero!...’’

Mas os dois homens haviam já saído, e, erguendo do chão o fúnebre objecto, lá continuaram o seu caminho...

Era possível que à mesma hora, na casa habitada pelo corpo a que esse caixão ia servir de leito eterno, estivesse uma mãe chorando amargamente, rodeada pelos seus pobres filhos que – morto o pai – ficavam na miséria...

Sim, era possível; mas também era possível haver apenas, em lugar desse comovedor quadro, um ‘‘herdeiro’’ ambicioso, voraz, derramando lágrimas hipócritas sobre o corpo ainda quente daquele que acumulara e aferrolhara por largos anos a fortuna que finalmente lhe ia pertencer...

Impelido por uma força desconhecida, levantei -me, fechei a janela e, sem saber como, achei -me na rua seguindo a horrível caixa vermelha!...

Tinha caminhado não sei durante quanto tempo, tinha atravessado não sei que ruas, quando de súbito estaquei anelante e como que paralisado: o sinistro frete entrava para o Teatro do Príncipe Real, onde na noite seguinte se devia realizar a primeira representação do Morto -Vivo,
drama cujo segundo acto – lá dizia o cartaz – se
passava numa câmara mortuária...

Ah! ao ver tal, ao ver que esse caixão que tanto me impressionara, que me sugerira tão sombrios pensamentos, não passava de um mesquinho adereço de teatro, senti uma sensação igual à que sentiria se me tivessem arremessado à cara com um balde d’água fria...

A passos vacilantes, a cambalear como um ébrio,
encaminhei--me para minha casa...

Deitei -me. Adormeci...

No outro dia, ao acordar, lembrei -me da terrível ‘‘aventura’’ da véspera, soltei uma gargalhada e, à noite... fui assistir à ‘‘primeira’’ do Morto –Vivo.





in “Primeiros Contos”






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