domingo, 11 de outubro de 2020

LIMA DE FREITAS – VIEIRA DA SILVA e os seres dos espelhos (IX)



LIMA DE FREITAS
(Setúbal, Portugal, 1927 — Lisboa, 1998)
Pintor, desenhador, escritor

***

VIEIRA DA SILVA E OS SERES DOS ESPELHOS (IX)

(continuação)
«Por abrandar a paixão
      Que cantasse em Babilónia
As cantigas de Sião.»

A Sião de Camões ecoa nas cidades dormentes com as quais Klee socerre Kafka, e perde-se de vista, enigmática, em certos quadros de Max Ernst. 

Mas Vieira da Silva é, por excelência, a pintora da cidade onírica, mas duas variedades, a do pesadelo e a do sonho. Pesadelo? Eis a «Guerra» ou «Desastre», «A guerra das facas», «O cataclismo». Sonho? Aí temos o «Porto iluminado», a «Cidade branca», a «Paisagem vertical». Aglomerações de alvéolos, como aglomerações de neurónios, cidade ou cérebro, massa cinzenta, rede de iridiscências, rumor de milhões de ramos de árvores à passagem da brisa, sussurro dos bancos de coral à passagem das marés…

A pintura de Vieira da Silva traz-nos notícias dessa confluência das cidades reais e imaginárias, incessantemente urbaniza, diante dos nossos olhos, o trânsito do desejo e da nostalgia no espaço multidimensional. Através desse espaço, lança por vezes uma onda, um frémito, que o encurva. Esses frémitos acordam os seres dos espelhos, desejosos de sacudir o jugo das aparências (que não passa, quase sempre, de um jogo de falsidades).     

(continua)


in "Voz Visível" – Ensaios – 1971



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