sexta-feira, 31 de julho de 2020

O MEU PAI JÁ ESTÁ DEITADO



O MEU PAI JÁ ESTÁ DEITADO

O meu pai já está deitado,
Minha mãe está-me a chamar;
Eu bem sei o qu’ela quer,
Não me deixa namorar.

Não me deixa namorar,
Diz que o tempo já passou;
Coitada já não se lembra,
Que ela também namorou.

Que ela também namorou,
Num tempo que já lá vai;
Coitada já não se lembra,
Que namorou o meu pai.

Tão triste agora me vejo,
Sem a tua companhia;
Que até já nem me lembro,
Se fui alegre algum dia.

Ó meu bem quando casarmos,
Não te quero ver mondar;
Quero que fiques em casa,
Porque te quero estimar.

O meu amor é carreiro,
Tem arreatas na mão;
Eu também o trago a ele,
Dentro do meu coração.




Cancioneiro Popular - Quadras recolhidas por José Leite de Vasconcelos, filólogo, etnógrafo (Portugal, 1858 – 1941).
Imagem: pintura de José Malhoa (Caldas da Rainha, Portugal, 1855 – Figueiró dos Vinhos, 1933).

quinta-feira, 30 de julho de 2020

ALEXANDER PUSHKIN – A Uva



ALEXANDER PUSHKIN
(Moscovo, Rússia, 1799 - São Petersburgo, 1837)
Poeta

***
A UVA
Não choro, finda a primavera
ligeira, a rosa que definha,
pois, maturando numa vinha
ao pé do monte, a uva me espera:
primor do vale viridente,
deleite do dourado outono,
tão diáfana e tão longo como
os dedos de uma adolescente.



Tradução: Boris Schnaiderman e Nelson Ascher

quarta-feira, 29 de julho de 2020

CRUELDADE E SOFRIMENTO




CRUELDADE E SOFRIMENTO

A crueldade é constitutiva do universo, é o preço a pagar pela grande solidariedade da biosfera, é ineliminável da vida humana. Nascemos na crueldade do mundo e da vida, a que acrescentámos a crueldade do ser humano e a crueldade da sociedade humana. 

Os recém-nascidos nascem com gritos de dor. Os animais dotados de sistemas nervosos sofrem, talvez os vegetais também, mas foram os humanos que adquiriram as maiores aptidões para o sofrimento ao adquirirem as maiores aptidões para a fruição. 

A crueldade do mundo é sentida mais vivamente e mais violentamente pelas criaturas de carne, alma e espírito, que podem sofrer ao mesmo tempo com o sofrimento carnal, com o sofrimento da alma e com o sofrimento do espírito, e que, pelo espírito, podem conceber a crueldade do mundo e horrorizar-se com ela.

A crueldade entre homens, indivíduos, grupos, etnias, religiões, raças é aterradora. O ser humano contém em si um ruído de monstros que liberta em todas as ocasiões favoráveis. 

O ódio desencadeia-se por um pequeno nada, por um esquecimento, pela sorte de outrem, por um favor que se julga perdido. O ódio abstracto por uma ideia ou uma religião transforma-se em ódio concreto por um indivíduo ou um grupo; o ódio demente desencadeia-se por um erro de percepção ou de interpretação. 

O egoísmo, o desprezo, a indiferença, a desatenção agravam por todo o lado e sem tréguas a crueldade do mundo humano. E no subsolo das sociedades civilizadas torturam-se animais para o matadouro ou a experimentação. 

Por saturação, o excesso de crueldade alimenta a indiferença e a desatenção, e de resto ninguém poderia suportar a vida se não conservasse em si um calo de indiferença.



EDGAR MORIN (França, 1921), in “Os Meus Demónios”

Imagem: pintura de Pieter Bruegel, "O Velho" 


terça-feira, 28 de julho de 2020

PEDRO DE AMORIM VIANA - Filósofo



PEDRO DE AMORIM VIANA
(Lisboa, Portugal, 1822 - 1901)
Filósofo, matemático

***

É um dos nomes de maior destaque no panorama cultural do século XIX português.

Amorim Viana afirmava, entre outras, como impossibilidades, a profecia; os milagres; a existência de seres angélicos; o pecado original e a consequente queda; a encarnação de Cristo enquanto Deus e homem, simultaneamente; a existência do mal como realidade metafísica, sendo este apenas um reflexo da imperfeição humana.

A problemática da morte e da sobrevivência da alma assume em Amorim Viana contornos que se aproximam, curiosamente, do conceito dos corpos subtis inerentes às ordens de densidade da matéria física, assim como da transmigração das almas (ainda que neste caso hajam diferenças topológicas – uma vez que na concepção vianina a alma reencarnará noutro mundo, que não este) defendida por algumas doutrinas esotéricas modernas – como o espiritismo Kardeciano, o teosofismo de Blavatsky e o antroposofismo de Rudolf Steiner – ao sustentar que a alma humana, uma vez liberta do corpo físico e ainda que eterna, continuará vinculada à matéria e a outro corpo – presume-se de menor densidade – que por sua vez habitará outro mundo ou plano, onde, da mesma forma que neste, nascemos, vivemos e morremos e, assim sucessivamente, até se atingir a perfeição e a consequente felicidade.

Esta perfeição estaria contudo – segundo Amorim Viana – condicionada pela impossibilidade do homem, enquanto criatura, atingir a perfeição absoluta, só acessível a Deus – o Criador.




Fonte: “Didacta – Filosofia”





segunda-feira, 27 de julho de 2020

ÓPERA - Aïda




AÏDA

Ópera em quatro actos, com música de Giuseppe Verdi e libreto de Antonio Ghislanzoni. A sua estreia mundial aconteceu na Casa da Ópera, no Cairo, Egipto, em 24 de Dezembro de 1871.

*

Grandiosa ópera de Verdi acerca do amor do guerreiro Radamés e da escrava Aïda – que é na realidade a filha do governante da Etiópia.

Quando planeiam fugir juntos, Radamés trai acidentalmente a sua pátria revelando alguns segredos militares. É julgado e condenado a ser enterrado vivo.

Aïda introduz-se secretamente na sepultura e morre com ele.





in “Óperas Imortais”




domingo, 26 de julho de 2020

JOSÉ CARDOSO PIRES – João Abel Manta (II)


JOSÉ CARDOSO PIRES
(Vila de Rei, Portugal, 1925 - Lisboa, 1998)
Escritor, crítico literário

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JOÃO ABEL MANTA (II)
(continuação)


João Abel Manta tem outra coisa. A travessura perigosa, talvez. Um desenho dele, um dos mais «divertidos» que seja – caligráfico, pacientemente «inactual», pirâmide de mil e tantas simbologias criadas e decifradas a longo prazo, Goya mais Steinberg, tudo isso, já sei – um desenho dele lembra-me um menino de muitas graças em passatempo de família, num trapézio colocado a metro e meio de altura sobre um tanque de nitroglicerina. O mais pequeno descuido pode ser a morte da família e a salvação do menino.

(continua)


in “Cartilha do Marialva”

sábado, 25 de julho de 2020

WILLIAM BUTLER YEATS - Quando fores Velha



WILLIAM BUTLER YEATS
(Irlanda, 1865 - França, 1939)
Poeta, dramaturgo

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Foi um dos artífices do renascimento literário do seu país e ocupa um lugar cimeiro entre os maiores poetas de língua inglesa de todos os tempos. Foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1923. Seduzido pelas lendas e mitos da tradição irlandesa, sentiu-se também atraído pelo mundo do sobrenatural, interessando-se por leituras sobre a tradição hermética. As suas últimas obras revelam um intenso misticismo.

Fonte: “Nova Enciclopédia Portuguesa”

***
QUANDO FORES VELHA

Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;

Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;

Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou as montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.




Tradução: José Agostinho Baptista





quinta-feira, 23 de julho de 2020

OS JUÍZOS LIGEIROS DA IMPRENSA




OS JUÍZOS LIGEIROS DA IMPRENSA


“Incontestavelmente foi a imprensa, com a sua maneira superficial e leviana de tudo julgar e decidir, que mais concorreu para dar ao nosso tempo o funesto e já irradicável hábito dos juízos ligeiros. 

Em todos os séculos se improvisaram estouvadamente opiniões: em nenhum, porém, como no nosso, essa improvisação impudente se tornou a operação corrente e natural do entendimento. Com excepção de alguns filósofos mais metódicos, ou de alguns devotos mais escrupulosos, todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente do penoso trabalho de reflectir. 

É com impressões que formamos as nossas conclusões. Para louvar ou condenar em política o facto mais complexo, e onde entrem factores múltiplos que mais necessitem de análise, nós largamente nos contentamos com um boato escutado a uma esquina. Para apreciar em literatura o livro mais profundo, apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo ondeante do charuto.

O método do velho Cuvier, de julgar o mastodonte pelo osso, é o que adoptamos, com magnífica inconsciência, para decidir sobre os homens e sobre as obras. 

Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que esplêndida facilidade exclamamos, ou se trate de um estadista, ou se trate de um artista: “É uma besta! É um maroto!” Para exclamar: “É um génio!” ou “É um santo!”, oferecemos naturalmente mais resistência. 
Mas ainda assim, quando uma boa digestão e um fígado livre nos inclinam à benevolência risonha, também concedemos prontamente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa de louros ou a auréola de luz”.



EÇA DE QUEIRÓS (Póvoa do Varzim, Portugal, 1845 – Paris, França, 1900), in “Cartas de Paris”.
Imagem: Eça de Queirós por Columbano Bordalo Pinheiro.





segunda-feira, 20 de julho de 2020

RAINER MARIA RILKE - A morte do Poeta



RAINER MARIA RILKE
 (Praga, República Checa, 1875 – Montreux, Suiça, 1926)
Poeta

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Personalidade complexa, revelou nas suas obras uma busca elaborada das realidades da vida, representando uma viragem na poesia europeia. É considerado o maior representante da lírica expressionista do seu tempo.

Fonte: “Nova Enciclopédia Portuguesa”

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A MORTE DO POETA

Jazia. A sua face, antes intensa,
pálida negação no leito frio,
desde que o mundo, e tudo o que é presença,
dos seus sentidos já vazio,
se recolheu à Era da Indiferença.
Ninguém jamais podia ter suposto
que ele e tudo estivessem conjugados
e que tudo, essas sombras, esses prados,
essa água mesma eram o seu rosto.
Sim, seu rosto era tudo o que quisesse
e que ainda agora o cerca e o procura;
a máscara da vida que perece
é mole e aberta como a carnadura
de um fruto que no ar, lento, apodrece
.


Tradução: Augusto de Campos

domingo, 19 de julho de 2020

JOSÉ CARDOSO PIRES – João Abel Manta (I)



JOSÉ CARDOSO PIRES
(Vila de Rei, Portugal, 1925 - Lisboa, 1998)
Escritor, crítico literário

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JOÃO ABEL MANTA tem o condão da minúcia em doses impiedosas capaz de reunir uma atrevida e teimosa ostentação dos fundamentos exactos do real quotidiano: muros desenhados à régua, sombras (mesmo a das personagens ridiculamente não-exactas) levantadas em perspectiva com pontos de fuga matemáticos, panos (mesmo que cobrindo seres vivos de inexacta presença) descritos fibra a fibra como num cartão ampliado para uso dos teares. 

Uma ostentação, enfim, de fundamentos exactos extremamente denunciadores do gosto do rigoroso, ou seja, do estilo antiprovinciano.


O seu desenho repudia a caricatura não pela força do pormenor mas porque é de traço «fino», como o das agulhas das tatuagens que marcam o homem dolorosamente e para sempre. E desdenha do sarcasmo porque o sarcasmo envolve, regra geral, despeito e ironia saturada – e de ironia também a má pintura, e a má literatura, e a má política, têm a sua parte.

(continua)


in “Cartilha do Marialva”

sábado, 18 de julho de 2020

CRIME E CASTIGO




CRIME E CASTIGO


Romance do autor russo FYODOR DOSTOIEVSKI, publicado em 1866.

Um jovem estudante pobre, Raskolnikov, mata por dinheiro um velho penhorista. Depois a sua consciência começa a atormentá-lo e acaba por confessar o seu crime, iniciando o lento caminho do arrependimento e da expiação.

Este livro foi o primeiro grande romance de Dostoievski.





sexta-feira, 17 de julho de 2020

SØREN KIERKEGAARD - A Inveja é uma Admiração que se dissimula



SØREN KIERKEGAARD
(Copenhaga, Dinamarca, 1813 – 1855)
Filósofo, poeta

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É considerado um dos maiores filósofos do século XIX e também um teólogo influente. Seus livros Temor e Tremor e O Conceito da Angústia estão entre suas obras-primas. Kierkegaard é amplamente reconhecido como o pai do existencialismo.

Fonte: “Grandes Dinamarqueses”

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A INVEJA É UMA ADMIRAÇÃO QUE SE DISSIMULA


A inveja é uma admiração que se dissimula. O admirador que sente a impossibilidade de ser feliz cedendo à sua admiração, toma o partido de invejar. Usa então duma linguagem diferente, segundo a qual o que no fundo admira deixa de ter importância, não é mais do que patetice insípida, extravagância. A admiração é um abandono de nós próprios penetrado de felicidade, a inveja, uma reivindicação infeliz do eu.







quinta-feira, 16 de julho de 2020

JOAQUIM NAMORADO - Legenda para a Vida de um Vagabundo



JOAQUIM NAMORADO
(Alter do Chão, Portugal, 1914 - Coimbra, 1986)
Poeta

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Foi um dos iniciadores do neo-realismo coimbrão.

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LEGENDA PARA A VIDA DE UM VAGABUNDO

Nasci vagabundo em qualquer país,
minhas fronteiras são as do mundo.
Esta sina vem-me no sangue:
não me fartar! Um desejo morto,
mais de dez a matar.

O caminho é longo! …
— Mas nada é longe e distante
quando se quer realmente…
E nunca o cansaço é tão grande
que um passo mais senão possa dar.





quarta-feira, 15 de julho de 2020

MARGUERITE YOURCENAR – Nunca serei vencida



MARGUERITE YOURCENAR
(Bruxelas, Bélgica, 1903 – EUA, 1987
Escritora, poetisa

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NUNCA SEREI VENCIDA


Nunca serei vencida.
Não o serei
senão à força de vencer.

Cada armadilha estendida
fechando-me cada vez mais
no amor
que acabará por ser o meu
túmulo,
acabarei a minha vida numa cela
de vitórias.

Sozinha,
a derrota encontra chaves,
abre portas.

A morte,
para atingir o fugitivo,
tem de se pôr em movimento,
perder essa fixidez
que nos faz reconhecer
que ela é o duro contrário
da vida.


Ela dá-nos o fim do cisne
atingido em pleno voo,
de Aquiles agarrado pelos cabelos
por não sabermos que sombria Razão.


Como a mulher asfixiada no vestíbulo
da sua casa de Pompeia,
a morte não faz mais do que prolongar
no outro mundo os corredores
da fuga.

A minha morte será
de pedra.

Conheço as passagens,
as curvas,
as armadilhas,
todas as minas da Fatalidade.

Não posso perder-me.

A morte,
para me matar,
terá necessidade da minha
cumplicidade.