quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

A CONVERSÃO DE BOCAGE




A CONVERSÃO DE BOCAGE

Na decomposição da nossa sociedade tradicional, Bocage é um nome que simboliza inteiramente a anarquia intelectual e moral do espírito naturalista da Enciclopédia.

Vítima dos erros do seu tempo, serviu-os Bocage com o fulgor da sua sátira, - com a viva intensidade do seu temperamento de inadaptado a uma regra superior que o disciplinasse. Por isso de Bocage não ficou para a maioria das gentes senão a lenda grosseira da sua extravagância de frequentador de botequins.

No entanto, em Bocage palpitava por vezes a cintilação do génio e as nossas formas poéticas deveram-lhe aqui e além um significativo esforço de renovação literária. […]

Se a obra de génio vale, sobretudo, pelo que contém de universal e humano, o soneto de Bocage moribundo não tem segundo na literatura de todo o mundo. […]

A clarividência que lhe inspirou o seu soneto célebre é a prova melhor a invocar-se contra a lenda sectária que no-lo descreve coacto pela pressão inquisitorial e pelos mórbidos receios religiosos do seu espírito abatido.

Bocage, convertido e arrependido, foi mais livre na condução da sua vontade que o Bocage dos risos demolidores e da «pavorosa ilusão da eternidade». […]

A introspecção psíquica que marca a culminância duma consciência, repassa linha a linha, palavra a palavra, o arranco de Bocage agonizante:

                 Meu ser evaporei na lida insana
                 Do tropel das paixões que me arrastavam
                 Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
                 Em mim quase imortal a essência humana.



in “Ao Princípio Era o Verbo” – ANTÓNIO SARDINHA (Monforte, Portugal, 1887 - Elvas, 1925)







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