sábado, 23 de janeiro de 2021

OPORTUNISTAS LITERÁRIOS




OPORTUNISTAS LITERÁRIOS


O egoísmo de pessoas ligadas ao meio cultural bloqueava, porém, frequentemente Natália Correia, sem grande jeito para se lhe esquivar.

O ambiente literário é vezeiro na lisonja, no ardil, na hipocrisia. Os críticos, esses, ora ajudavam à festa (nos então poderosos suplementos literários), ora tentavam pôr água na fervura.

Os pedidos dos outros impulsionavam Natália, mas quando os percebia manipuladores, derrubavam-na. Uma senhora do Sul, professora e poetisa, contacta-a no Botequim para lhe pedir uma opinião sobre versos que acabara de apurar.

«Diga sinceramente o que acha, mesmo que não os considere bons», insistia, envolvente, a autora. «Eu digo sempre o que penso», ripostou-lhe a interpelada.

Dias depois, novo contacto: «Podia escrever umas palavrinhas … com a sua referência na capa o editor publicava o livro.» Foram redigidas.

Dias depois, outra vez ela: «Estou tão feliz que, se concordasse, punha o que escreveu como prefácio, bastavam mais umas linhazitas.» Foram as linhazitas.

Dias depois, ao telefone: «O livro ficou uma maravilha, todos dizem que só a Natália o pode apresentar, pode?» Pôde. Lá fomos, despesas à nossa custa, ao Sul.

Semanas mais tarde: «A edição está quase esgotada, aconselham-me agora a procurar uma grande editora que lance a minha obra além-fronteiras, mas como não tenho contactos lembrei-me, se não for abuso, que a minha boa amiga podia dar uma palavrinha a …»
Natália desligou a chamada. Depois berrou, gesticulou. A indignação nela era por vezes apoteótica. Passada, porém, voltava a repetir tudo – e nós com ela.




in “O Botequim da Liberdade” – FERNANDO DACOSTA     
Imagem: pintura de NUNO VIEGAS





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